Por Fabrício Augusto de Oliveira*
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio Mello, ficou indignado com o presidente da Corte, Luiz Fux, por este ter cassado sua liminar de soltura do traficante conhecido como André do Rap. Não se indignou, no entanto, com o próprio traficante por este ter passado uma rasteira na justiça, fornecendo um endereço para o qual não foi, e por ter fugido do país. E nenhuma preocupação pelo fato de o governo, em situação de penúria financeira, ter de despender milhões de reais para voltar a prendê-lo. É típico do ministro.
Contrário à prisão em segunda instância, o ministro notabilizou-se por fazer uma leitura literal da lei, ser garantista ao extremo e, por não se permitir levar em conta as especificidades de cada caso concreto, mandar para as ruas todo e qualquer condenado, independentemente do grau de periculosidade que o mesmo representa para a sociedade e a segurança pública. Foi assim, para ficar com um exemplo mais distante, com Salvatore Cacciola, acusado de desvio de dinheiro público e gestão fraudulenta, no longínquo ano de 2000, cuja liminar para suspender sua prisão preventiva foi também derrubada pelo então presidente do STF à época, Carlos Veloso, mas o mesmo já havia dado no pé para seu país de origem e só voltou a ser preso sete anos depois pela Interpol por ter se aventurado a passear em terras estrangeiras.
Depois de ter investido na soltura do traficante Elias Maluco em 2019, assassino do jornalista Tim Lopes, e não se sabe de mais quantos criminosos em agosto deste ano, cuja decisão foi também anulada pela Primeira Turma do STF, no mês de outubro, o ministro Marco Aurélio voltou com toda a força em 2020, apoiado no confuso e recente critério do art. 316, § único do Código de Processo Penal (CPP), que tornou ilegais prisões preventivas não reavaliadas pelo juiz de primeira instância a cada 90 dias.
De acordo com levantamento feito pelo e divulgado no Estadão, o ministro concedeu, só neste ano, 92 liminares, das 225 que analisou, de soltura com base nesse novo dispositivo da lei, dentre as quais aparecem criminosos de vários tipos, como condenados ou suspeitos de tráfico internacional de drogas, homicídio qualificado, estelionato, formação de milícias etc. Para Marco Aurélio tratam-se, contudo, de “pacientes”, sem culpa formada, por não se ter verificado o trânsito em julgado e por não se respeitar o prazo da nova lei que exige a reavaliação da prisão a cada 90 dias.
Dentre estes condenados ou suspeitos, destacam-se o traficante Clóvis Ruiz Ribeiro, condenado a 16 anos de prisão, que conseguiu a liminar no dia 23 de junho, cassada dois meses depois pela Primeira Turma do STF, mas que hoje se encontra foragido. O mesmo ocorreu com José Ivan do Carmo de Brito, o Zé da Mala, condenado a 24 anos e 10 meses de prisão por tráfico internacional de drogas, mas que, tendo recebido o benefício do ministro, em abril, cuja decisão também foi cassada pela Primeira Turma do STF, em agosto, aproveitou para bater asas e continua, até hoje, com o mandado de prisão em aberto.
Embora ressinta-se da derrubada de suas liminares pela Primeira Turma e mais ainda da feita pelo ministro Fux, por que decidida isoladamente por um de seus pares, considerando-as atos de censura a suas liminares, para o ministro Marco Aurélio essas fugas não têm a menor importância, até mesmo justificando-as ao afirmar que “[...] enquanto a culpa não está formada, mediante uma sentença da qual não caiba mais recurso, o acusado tem o direito de fugir, que eu aponto como natural”, defendendo a “presunção de sua inocência” enquanto o processo não transitar em julgado, mesmo que, nas instâncias inferiores tenha sido comprovado, com provas robustas, que ele tenha cometido o crime, e nada mais reste para ser investigado nas instâncias superiores, a não ser filigranas jurídicas. Afinal, as leis são feitas para proteger o indivíduo da sanha punitiva do judiciário e, se ela não é respeitada, de acordo com a sua posição, emerge uma desordem legal e jurídica, independentemente se este indivíduo representa ou não um perigo para a ordem pública e para sociedade. É a posição do ministro.
André do Rap não é um criminoso qualquer. Condenado a 25 anos por tráfico internacional de drogas, com sentença dada em segunda instância, conseguiu ficar foragido no país por cinco anos, fora do alcance dos olhos da polícia, o que só revela o poder e os recursos de que dispõe para se proteger. Sua liberdade representa um sério risco para a sociedade pelos malfeitos que pode lhe causar e um retrocesso na política de combate às drogas no país. Mas o ministro, infelizmente, não leva em conta este currículo, apegado à tese garantista, benéfica para criminosos e condenados endinheirados que têm acesso ao STF por meio de advogados pagos a peso de ouro.
O plenário do STF que julgou a cassação da liminar de Marco Aurélio por Fux, teve o bom senso de aprovar sua decisão, embora com críticas de alguns ministros à sua interferência no processo, por considerá-la incabível, o que não deixa de ser um contrassenso. E também de fechar a janela do § único do art. 316 do CPP que, na interpretação do ministro, questionada no julgamento, que garantia automaticamente a liberdade do condenado, no caso de não reavaliação de sua prisão preventiva no prazo de 90 dias. Mas permanecem várias dúvidas sobre o fato dessa mudança ser capaz de pôr cobro às liminares de soltura de condenados neste fórum.
A proposta de Fux de que essas liminares passem a ser julgadas pelo plenário, e não mais decidida monocraticamente pelos ministros, representa um avanço para coibir essa prática, mas parece haver resistências à mesma, por parte de alguns ministros, do que se pôde depreender do julgamento, embora justificadas pelo fato de que representaria sobrecarga de trabalho na Corte, à medida que implicaria redução de seu poder.
Se tal proposta não for aprovada e as decisões monocráticas sobre essas liminares continuarem em vigor, certo é que permanecerá o pretexto da ausência do “trânsito em julgado”, pelo menos enquanto essa matéria permanecer como está, especialmente no caso dos juízes que posam como garantistas, para continuar libertando criminosos, mesmo que condenados em segunda instância. Ou seja, por excesso de garantismo a sociedade pode continuar exposta a não poucos riscos.
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social e do Grupo de Conjuntura do Departamento de Economia da UFES, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Uma pequena história da federação e do federalismo fiscal no Brasil: a necessidade de uma reforma tributária justa e solidária”.
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