Erlon José Paschoal *
Não deve ter sido nada fácil levar a cabo uma pesquisa exaustiva em centenas de documentos, entre registros oficiais, correspondências de jesuítas, testamentos, cartas particulares, livros sobre os costumes da época, e inúmeras outras modalidades de documentação, para então escrever um romance utilizando todo este material. Nas palavras do autor, seu tom “é falsamente épico, pé no chão e farto em entrelinhas irônicas ou até mesmo agressivas aos olhares atuais mais sensíveis”, e narra a vinda do donatário Vasco Fernandes Coutinho para assumir e tomar posse da undécima capitania hereditária, depois chamada de Espírito Santo, recebida das mãos do então rei de Portugal Dom João IIII.
Pois bem, foi esta a façanha bem-sucedida empreendida pelo escritor, poeta, dramaturgo, historiador e roteirista de cinema e TV, Jovany Sales Rey. Trata-se na realidade do primeiro volume de uma trilogia denominada “Uma Terra no Fim do Mundo”, que traz o título de “O Donatário”, editado e publicado pela SECULT em 2014. Em quase 600 páginas, o autor relata a chegada do capitão-mor e de sua comitiva, composta em sua maioria por criminosos de todo tipo, degredados pela corte portuguesa, selecionados por Vasco dentre os vários condenados na Cadeia de Limoeiro em Lisboa. Diante do donatário “os condenados revelam euforia com a chance de se ver em liberdade, mesmo que em uma terra desconhecida, chegando a brigar por uma dianteira na fila”. O autor se concentra então na sucessão de encontros e desencontros, no esforço de erguer as primeiras construções e moradias nesta nova capitania e nas lutas e enfrentamentos intermináveis com os habitantes locais, sobretudo, contra os tupiniquins, os goitacás e os botocudos, nas duas primeiras décadas da colonização – entre 1534 e 1555 – e nas tentativas de dominação desta parte selvagem, indócil e tão bela ao Sul do Atlântico.
Dizem os livros de História utilizados em detalhes pelo autor que em 23 de Maio de 1535, o donatário e seu grupo de 63 colonos chegaram a bordo de sua única caravela, “Glória”, numa enseada junto a um rochedo, onde mais tarde seria construído um convento, sendo recebido pelos nativos na praia, com curiosidade, mas também com agressividade. Por ser domingo de Pentecostes, o lugar foi batizado então com o nome de Espírito Santo.
Ao ler uma obra com estas caraterísticas é sempre muito difícil distinguir entre a narrativa histórica fiel aos fatos e a criação literária que conduz e alinhava o enredo e as relações entre os personagens. De qualquer modo, a obra encanta o leitor com um ritmo fluente e uma composição rica dos tipos e personagens retratadas, com suas contradições pessoais diversas, na construção lenta, difícil e tensa dos dois primeiros povoados do Espírito Santo. Prevalecem os aspectos humanos e controversos naquele microuniverso composto por portugueses, outras etnias europeias e por variadas tribos indígenas residentes na região e, sobretudo, na figura do donatário e de suas forças e fraquezas.
Até culminar na decadência física e psicológica dos personagens centrais e no desalento de uma capitania que se negava a se desenvolver como imaginavam os portugueses. Sabemos que o donatário acabou empenhando e dissipando todos os seus bens para investir na capitania, e acabou morrendo pobre, desanimado, doente e desolado. Uma obra densa, mas acessível a todos, que mescla com maestria o relato histórico e a composição literária, tendo como cenário uma terra no fim do mundo onde “nada é o que parece e o que não parece às vezes é”.
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, Escritor e Tradutor de alemão.