Por Erlon José Paschoal *
O Espírito Santo tem muitos talentos artísticos não devidamente reconhecidos ou só tardiamente reconhecidos pela sociedade local. Um deles é o pernambucano radicado no Espírito Santo Jaceguay Lins (1947-2004). O livro “Jaceguay Lins – Personalidade e Obra” escrito pela professora da FAMES (Faculdade de Música do ES), pianista e pesquisadora musical Paula Galama nos oferece uma ótima oportunidade de conhecer um pouco mais a obra produzida por este importante compositor, arranjador, escritor e maestro brasileiro, e lança luz também sobre suas contradições existenciais, suas buscas, suas inquietações e suas dificuldades de lidar com o mundo das regras, das normas e das formalidades, sobretudo, nos terríveis anos de chumbo durante a ditadura militar. O livro foi publicado pela FAMES em 2014 e traz um prefácio do maestro da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo Helder Trefzger.
Embora uma parte significativa de sua obra tenha se perdido, o conjunto delas abrange, sobretudo, peças experimentais, mas também trilhas sonoras para cinema, uma ópera, peças solo, peças para conjunto de câmara e também obras sinfônicas. Para a autora, Jaceguay possuía uma enorme capacidade criativa, um grande dinamismo e uma sintonia impressionante com o que se produzia de mais novo no campo da música no mundo da época. Além da pesquisa minuciosa sobre a vida e a obra do compositor, a autora enaltece e destaca a sua profunda admiração pela música tradicional do Espírito Santo, sobretudo, o congo e o ticumbi, que passaram a ter uma forte influência em suas composições.
A primeira das obras em que inseriu o congo foi “Guananira” e a partir de então buscou sempre superar as diferenças entre a música erudita e a música popular. Seus encontros com um dos maiores estudiosos e divulgadores da cultura popular do Espírito Santo Hermógenes Lima Fonseca (1916-1996), - o Mestre Armojo, como era conhecido - levou-o a compor as “Hermogeanas”, depois lançadas com o título de “Melodiário”, além de escrever um livro sobre o ritmo que o encantou desde o princípio, “O Congo do Espírito Santo”. Por isso trabalhou intensamente na popularização do congo. Para Juca Magalhães, citado pela autora, “Lins desenvolveu um trabalho de redescoberta e de valorização da música popular e folclórica do Espírito Santo, sobretudo, o congo sendo – através de sua “Banda Dois” formada na Universidade Federal do ES – um dos fomentadores do movimento musical que culminou com a popularização do gênero e de sua identificação com a cultura popular capixaba. É possível fazer uma ligação direta da influência do maestro com o surgimento do Rockongo da “Banda Manimal”, que trouxe a reboque outros grupos que se tornariam muito populares como o “Casaca”, da Barra do Jucu, nomeada a partir de um dos instrumentos característicos das tradicionais bandas do folclore capixaba.”
Vale lembrar que sua ópera-recreio infantojuvenil – como o compositor a definia – “O Reino de Duas Cabeças” teve recentemente uma excelente montagem feita por profissionais locais. “A história, composta por 12 quadros absurdos em um único ato, apresenta um reino fantástico, governado por um monstro bicéfalo ditador. A solução é uma revolução, provocada pelos outros personagens, para acabar com tanta tirania.” Segundo a autora e também a diretora musical deste espetáculo, Paula Galama, ele possibilita a um público mais jovem ter contato com a obra do compositor: “A obra é original em vários aspectos: em sua concepção formal e imaginativa, na utilização dos temas, na textura orquestral (que utiliza o recurso do playback) e na inserção recorrente de elementos agregadores da cultura brasileira”.
Jaceguay Lins foi maestro da então Orquestra Filarmônica do Espírito Santo durante dois anos após sua mudança do Rio de Janeiro para Vitória em 1981, onde permaneceu até 2004 quando faleceu aos 57 anos, deixando uma obra marcadamente experimental, original e em muitos aspectos adiante de seu tempo, que merece ser sempre estudada e revisitada.
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, Escritor e Tradutor de alemão.