Por Ailse Therezinha Cypreste Romanelli *
No silêncio da quarentena, repasso as últimas notícias do nosso FeBeAPá: escolas fechadas e aulas online. Prá todo mundo? E quem não tem acesso à internet? Os alunos serão aprovados? Ou não? E a alfabetização, como é que fica? Método fônico? Ou palavração? Parece que, por aqui, a educação não melhora tão cedo. “Tudo culpa de Paulo Freire,” dizem. Para completar, fico sabendo que estudos recentes revelam que alunos negros recebem punições mais rigorosas que as aplicadas aos alunos brancos, pelos mesmos erros. Nas avaliações, seus conceitos são sempre piores embora os resultados sejam os mesmos dos brancos.
No final dos anos quarenta, ninguém sabia de Paulo Freire, mas numa cidade do interior, havia um jovem negro concluindo o Curso Científico (antigo Ensino Médio). Se era motivo de admiração para uns, para outros era uma ousadia sem tamanho. Um atrevimento. Ainda por cima ele escrevia versos; era poeta. Mas, aos trancos e barrancos, o jovem ia vencendo o preconceito, apoiado pelos que lhe eram simpáticos e desconsiderando o bulling que nunca deixou de existir.
Os professores, de modo geral, olhavam-no com um misto de condescendência e cumplicidade, sempre incentivando e apoiando seu esforço na superação das dificuldades. A exceção era o professor de Português que não aceitava a pessoa que ele era e, muito menos, sua audácia em estar onde não devia. Em prosa ou verso seus textos eram sempre criticados duramente: a construção das frases, o vocabulário e quando se tratava de poesia, então... era o estilo, ou a métrica, as rimas e sabe Deus o que mais. Notas? Sempre as mais baixas.
Na época, a palavra para esse tipo de procedimento era perseguição e o meu amigo, cansado de ser perseguido, resolveu vingar-se.
Mergulhou na biblioteca do Colégio (que naqueles tempos era, realmente, uma senhora Biblioteca) garimpando um texto que servisse aos seus propósitos e encontrou, na justa medida, um soneto de Camões absolutamente desconhecido. Pacientemente aguardou que o professor pedisse uma redação que se encaixasse no tema da poesia. Apresentou o trabalho como de sua autoria e esperou pela crítica.
E ela veio. Pesada e destrutiva; ironia sobre a construção das frases e deboche das rimas; o trabalho, desqualificado, não mereceu mais do que a nota quatro. Então, para espanto dos colegas o meu amigo se levantou e entregou um livro ao professor:
“- Professor preciso confessar que essa poesia não foi escrita por mim. Copiei deste livro; é um soneto de Luiz de Camões.”
A turma caiu na risada, aplaudindo, enquanto ele acrescentava: “- Fiz isso para provar que o Sr. me persegue; só porque sou preto.”
O professor engasgou. Ficou mudo. A turma regozijava em silencio. Depois balbuciou uma tentativa de justificar a nota baixa pelo plágio mas não coube. Juntou seu material e se retirou da sala.
Ninguém foi punido. Dias passaram e acalmaram-se os ânimos. As aulas de Português, talvez um pouco mais comedidas, retomaram seu ritmo. As críticas cessaram e as notas melhoraram, mas só o suficiente para que o aluno não ficasse reprovado. Ele concluiu seu curso, prosseguiu seus estudos em outra cidade e tornou-se jornalista bem sucedido. Poetou enquanto viveu. O preconceito esfriou um pouco e a estória entrou para o folclore da escola.
Hoje, quase um século depois, o preconceito se mantém bem vivo. Ouvi muitas queixas ao longo de meu trabalho na educação e, por incrível que pareça, elas continuam atuais. Na escola pública, especialmente as de periferia, há professores ou coordenadores que desprezam os alunos, desdenham sua pobreza, vêem com ironia sua carência cultural, usando expressões como: bando de burros ou gente que não dá prá nada. Até então pareciam ser episódios pontuais, não uma atitude generalizada.
A pesquisa acima citada foi feita nos Estados Unidos. Está publicada na revista Avaliação Educacional e Análise de Políticas, sem tradução em português. Um pesquisador brasileiro em estudos na mesma linha obteve resultados semelhantes. Bom seria que as pesquisas continuassem e tivéssemos mais estudos a respeito. Alô, mestrandos e doutorandos. Fica a sugestão.
* A autora é Mestra em Educação e faz parte da Academia Feminina Espírito-santense de Letras.