Por Ailse T. Cypreste Romanelli*
Nos anos quarenta morávamos no interior e eis que aconteceu uma epidemia de febre amarela. Começara com os macacos, contou um de nossos professores. Dando aulas em uma cidade vizinha, ia de ônibus e via os macacos pendurados nas árvores da beira da estrada como se pedissem socorro. Na volta, à tarde, estavam no chão, mortos. Quando passou para os humanos, as aulas foram suspensas e todos rapidamente, vacinados. Nas ruas, os agentes de saúde penduravam umas bandeirinhas amarelas na porta ou nas janelas das casas que visitavam, em busca de focos de Aedes. Esse mesmo, que anda por aí. Nada a fazer, além de caçar bravamente os mosquitos e lamentar os mortos. Então meu pai, talvez a título de consolo, costumava contar uma certa estória, vivida por ele, durante um surto de peste, no princípio do século passado, aqui em Vitória. Sim, porque esta não é a nossa primeira vez; já vivemos outros perrengues, além da febre amarela, a gripe espanhola e a peste.
Quando a notícia correu, minha avó com meus tios, logo foram exportados para roça, a fazenda que meu avô tinha em Piá Pitangui, em Viana e por lá deixados até que passasse a onda. Ficaram em Vitória os mais velhos, o tio Joaquim e meu pai, mas o tio Joaquim acabou adoecendo com a peste bubônica. Ainda bem, pois esta, às vezes tinha cura.
Meu pai, embora mais novo, assumiu todas as tarefas, enquanto o irmão se tratava e cumpria quarentena. Era preciso atender a casa comercial na rua Primeiro de Março e fazer as compras para abastecer o restaurante do hotel, que esse eu nunca soube onde ficava; assim, diariamente, ele ia até à Vila Rubim esperar por uns verdureiros que vinham de barco trazendo legumes, frutas, artesanato, galinhas, pato, cabrito, melado, tudo produzido nas redondezas e alguma coisa que viesse rio abaixo, de Santa Leopoldina e adjacências. Afinal, CEASA não havia e geladeira muito menos. Muitas pessoas preferiam fazer suas compras diretamente dos barqueiros, não só por ser mais barato como porque compravam produtos frescos. Então ficava-se por ali, jogando conversa fora.
Numa dessas empreitadas, enquanto meu pai esperava pelos verdureiros, chegou uma embarcação diferente. As pessoas que a conduziam pediram que o povo se afastasse avisando que traziam doentes. Com a peste correndo solta pela cidade todos se afastaram temerosos. Uma carroça chegou e começaram a levar os doentes. Assim que o carro se foi, um estardalhaço de alarmes anunciou uma viatura da polícia. Os guardas dispersaram os curiosos remanescentes, estenderam faixas de isolamento e continuaram com o desembarque. Só que, agora, já não eram doentes. Agora eram cadáveres. Prisioneiros recolhidos de uma ou várias cadeias e indigentes da zona rural, cujas famílias não tinham recursos para o sepultamento. Em alguns casos mais tristes, acontecia morrer toda a família, não havendo ninguém para enterrar os mortos; a polícia se encarregava disso. Não é para condenar, mas sem saber como se defender do contágio, era comum as famílias mais pobres, retirar de casa seus doentes terminais, colocando-os em algum abrigo distante da residência, ou debaixo de árvores, na borda da mata. Exatamente como na Europa, no século XIV.
Os corpos vinham despidos e iam sendo empilhados na calçada. Meu pai não sabia se aquilo era o cotidiano da epidemia ou se era alguma exceção insólita. Assistindo a cena, muitos se indignavam, outros se emocionavam comovidos com o destino daqueles seres, agora simplesmente corpos anônimos, amontoados como lixo, sem família, sem amigos, nem conhecidos. Ali estavam, no chão, sozinhos em sua nudez, na frieza e na solidão da morte. Horrorizado meu pai ficou estático. Lembrou-se de como nossa família ficara chocada e indignada quando as autoridades sanitárias exigiram que as roupas de cama e as roupas pessoais do meu tio Joaquim fossem queimadas, assim como a cama e o colchão. O vasilhame usado foi descartado e a casa teve que ser desinfetada com uma caiação nova. Aquilo que ferira nossa família, nem de longe se comparava ao que ele via agora. Desorientado, meu pai já não sabia se ficava para fazer suas compras ou se ia embora como muitos fizeram.
Eis que, de repente, da pilha de corpos ergue-se um dos mortos. Susto! Terror! Gritaria e debandada geral. Os guardas atônitos, ficaram paralisados, uns sem saber o que ocorria, outros apavorados no susto, outros divertidos, embora cheios de medo, enquanto o morto, nu em pêlo, depois de olhar em volta pulou na calçada e saiu correndo sumindo na primeira a esquina. Quando os policiais se refizeram do susto, o morto-vivo já estava longe. Refeito do choque, meu pai abalado com a crueza da realidade da doença, voltou para casa acabrunhado e de mãos vazias.
Nunca ficou sabendo quem era o fugitivo e nem se conseguira escapar da doença ou da polícia.
Naquele dia, no hotel do meu avô, as saladas, provavelmente, devem ter sido mais simples e as fruteiras mais pobres.
*Mestra em Educação e membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras.