Por Guilherme Henrique Pereira*
Recentemente aqui mesmo (Histórias e Narrativas sobre o Espírito Santo, 05/02/2021) comentei que autores de fora do ES quando interpretam a dinâmica econômica e social deste estado geralmente produzem narrativas pouco aderentes à realidade. O ES tem lá suas particularidades que requer vivência por aqui para conseguir compreendê-las. De outro modo nem pocando (eis aí uma particularidade que só os capixabas entendem) de esforço será possível contribuir para nossa história. Também me referi a um livro lançado em dezembro sobre o ES que me deixou a impressão de muitos equívocos. Dentre eles a relação sugerida entre a desordem política (anos noventa) com a eleição de deputados estaduais, a partir de 1990, supostamente beneficiados de posições consolidadas na guerra entre “bicheiros” (anos oitenta). A outra tese defendida é que os governadores da década foram fracos e durante o período nada de positivo foi realizado. Típica tese que permite a hipótese da necessidade de desconstruir para, em seguida, apresentar o suposto novo e mais qualificado. Estratégia bastante utilizada na política brasileira.
Bom que as testemunhas oculares da história escrevam sobre estes episódios, assim os pesquisadores do futuro encontrarão um debate para analisar e não apenas a versão hegemônica do poder político e econômico. É nesta linha que pretendo contribuir, assim como já publicou aqui o parceiro de trabalho Guilherme Lacerda (Revisitando o Passado: Reflexões sobre o Governo Vitor.....18/02/20210)
Na página 120 do livro citado encontramos um depoimento de importante autoridade:
“A Assembleia tinha um salário e um mensalão” -, acho que foi inventado aqui no Espírito Santo. E não era igual para todo mundo. O cara mais importante ganhava mais um pouco. Tinha uma tabela paralela. Gratz administrava. Era pelo Fundap. Depois eu tive que segurar o Fundap funcionando. Como é que eu ia acabar com isso? Acabava com um arranjo econômico dentro do estado. Era a coisa mais difícil que eu tinha que explicar para fora: por que um governador que estava “limpando” o Espírito estava mantendo o Fundo? O Fundap tinha sido criado havia trinta anos, mas vinha funcionando como financiador daquele esquema.” (Depoimento atribuído ao ex-governador Paulo Hartung).
Para a maioria dos capixabas nada de novidade neste depoimento. Isso já circulava nos bastidores. A observação inevitável sobre este ponto é a absoluta ausência no Espírito Santo de um jornalismo investigativo e responsável com a coisa pública para as devidas denúncias deste “atrás das cortinas” naqueles anos. Contudo, aqui está uma contribuição positiva do livro porque traz o registro feito por uma autoridade de algo que ainda era inédito. E é muito contraditório no contexto: ao mesmo tempo que é uma significativa contribuição para a história, desmente uma das teses do livro. O predomínio do grupo de deputados, financiados por maus empresários, é que trouxe toda a desordem relatada. A onda de assassinatos seguramente tem outros determinantes. Difícil estabelecer uma relação entre os dois movimentos, exceto pela possibilidade de ter um ou outro nome lá e cá.
A outra tese é a da década perdida para os capixabas. Esta precisa de um trabalho maior de pesquisa para ser desmontada, ou relativizada. Na sequência serão relembrados alguns acontecimentos como sugestão de portas de entradas para historiadores que pretendam aventurar-se nas questões levantadas e que foram decisões ou investimentos relevantes na preparação do ES para o novo século.
O aeroporto de Vitória levou anos para ser construído. Mas, não teria sido inaugurado em 2018 se o governo do estado não tivesse batido o martelo lá por meados do ano 2000. Havia um impasse provocado por interesses que pretendiam que o aeroporto fosse construído distante da capital. Possível interesse em valorização de outras terras e, ao mesmo tempo explorar investimentos imobiliários na área da Infraero. A Infraero estava determinada a só investir no novo aeroporto no terreno que já era proprietária. Foi a equipe do Masterplan (Plano de Governo na época) que forneceu o apoio técnico necessário para o governador da época tomar a decisão: o projeto e obra do aeroporto deve iniciar-se no sítio atual. A Prefeitura de Vitória participou do esforço, além de desapropriar uma faixa de terra solicitada pela Infraero para viabilizar o final da pista.
Ainda nos anos noventa, na área de tecnologia podem ser citados: a chegada da rede mundial de computadores (consórcio Governo, prefeitura, Ufes, etc.) alinhando o ES com estágio de desenvolvimento então observado nos outros estados; a incubadora Tecvitória e, a partir dela, o impulso para o surgimento de um importante polo de empresas de software aqui no ES; a refundação do Instituto Jones que protagonizou no período o início do financiamento estadual (Funcitec) da pesquisa científica voltada para os interesses locais, bem como importantes investimentos na área social – Via “Fundo da Vale/Bndes” e de assentamento rural. Muito produtivo também foi o programa executado pelo BANDES (com suporte técnico do CNPq) em apoio a implantação da rede de “Centros de Desenvolvimento Tecnológico”, que renderam resultados imensuráveis, basta observar o desenvolvimento da indústria de rochas ornamentais (CTMAG) e a metal-mecânica (CDMEC). E ainda a requalificação da lavoura cafeeira (CTCAF), para falar somente dos CD ainda ativos por quase três décadas.
Na área de desenvolvimento econômico e social, cabe citar o início de investimentos significativos em saneamento básico na Grande Vitória; os programas de desenvolvimento de fornecedores locais para os grandes projetos. Nesse caso, empresas capixabas ganharam porte nacional e posteriormente se diversificaram para várias áreas. Acrescenta-se os investimentos em ampliação de terminais portuários, dentre outros. Muito oportuno registrar que o PIB per capita do ES representava 93,9% do PIB brasileiro em 1990, chega a 111,7% em 1995, depois cai um pouco, mas fecha a década no nível dos 105% do PIB nacional, sem dúvida um indicador de bom desempenho para o conjunto da sociedade.
Na área de segurança é preciso estudar a metodologia desenvolvida no ES e que fundamentou um ousado programa de trabalho. Posteriormente esse programa (PRO-PAS) foi atualizado e implantado em Pernambuco; depois, é relançado no ES em 2011. No primeiro período que o PRO-PAS foi executado, o indicador de homicídios dolosos caiu de 49,6 por 100 mil habitantes (1997) para 43,2 (2001); taxa que volta a crescer – embora com algumas oscilações - após o desmonte do programa até um ápice de 58,3 em 2009. Índice que cai para 39,4 em 2014, segundo período em que a metodologia foi utilizada por aqui.
Nos limites deste espaço e da crítica ao livro citado, a pretensão deste artigo foi chamar atenção para a nossa trajetória social, política e econômica durante as três últimas décadas. Espero que os pesquisadores se motivem para a abertura das portas citadas e tantas outras. Há muito a desvendar nas relações entre o público e determinados grupos de interesses durante o período. Os capixabas merecem conhecer sua verdadeira história e não apenas as narrativas apropriadas para alguns protagonistas. Mas, que isso precisam de base sólidas para pensarem o seu futuro. Para não se iludirem que o ES pode ser modelo para o Brasil, posto que o desalinhamento ocorrido, embora muito danoso, não é mais que um episódio isolado e encenado por um grupo pequeno de cidadãos distantes dos valores republicanos.
*Doutor em Ciências Econômicas, autor de “Economia Governos e suas Políticas”, Ex Secretário de Estado nas Pastas de Ciência e Tecnologia; e Economia e Planejamento; Editor da revista debatesemrede.com.br; Colunista em AgoraES.
** Agradeço ao prof. Doutor Guilherme N. Lacerda pelos comentários e sugestões, todas incorporadas por mim, porém, sem lhe transferir qualquer reponsabilidade pelas opiniões e dados contidos no texto.