Por: Guilherme Narciso de Lacerda (*)
O recente aumento da taxa Selic ficará marcado na história econômica contemporânea dos países como uma das medidas de política monetária mais insensatas já adotadas em todo o mundo.
As justificativas apresentadas para a decisão são frágeis e não resistem a uma análise técnica isenta, embora seja essa a adjetivação que os diretores do BACEN se utilizam para se preservarem. Ela revela o “chute para fora” dado por eles dias depois da Autoridade Monetária ter recebido do Congresso Nacional um “selo de independência”, há anos reivindicado pelo mercado financeiro.
Tal estatuto legal de autonomia reafirma uma situação que já existia na prática e que apenas demonstra a submissão do Estado Nacional a uma concepção econômica e ideológica aparentemente asséptica, mas de fato estulta e sem sintonia com os tempos atuais. Por aqui, a meta de inflação viceja solitária, desacompanhada de um compromisso em reduzir o desemprego, tal como ocorre nos países desenvolvidos.
A argumentação falaciosa para elevação dos juros básicos seria o comportamento da inflação. Mas, como assim? Por acaso há alguma pressão de demanda no país? Somente quando se tem uma oferta de bens e serviços pressionada por um poder de compra em uma economia próxima do pleno emprego é que faz sentido elevar os juros para equilibrar os mercados.
Hoje em dia temos 14 milhões de desempregados e mais de 6 milhões de desalentados. E há indicações que tais números estejam subestimados em face da situação pandêmica que se vive. Há, também, um número recorde de pessoas buscando alternativas no mercado informal para sobreviverem e os indicadores mostram como houve uma piora em termos do nível de pobreza e miséria no país. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional a fome atingiu 19 milhões de brasileiros durante a pandemia em 2020.
A alteração da taxa básica de 2,00% para 2,75% veio acompanhada de uma sinalização para outros ajustes tão ou mais elevados nas próximas reuniões do COPOM, o que torna a decisão ainda mais grave. São vários os impactos adversos de tal decisão numa economia em frangalhos, que não consegue retomar as atividades econômicas, em um momento de catástrofe social que ultrapassou 4000 mortos diários. A insensatez da medida permite-nos indagar em que país esses diretores “técnicos” vivem. É difícil de acreditar que as decisões sejam movidas exclusivamente por equações econométricas de modelos limitados que geram resultados de livros textos, sem qualquer aderência a uma realidade distante dos seus frios números. Qualquer analista mediano constata que as elevações recentes na inflação foram geradas exclusivamente por pressões de oferta, advindas da taxa de câmbio, do comportamento dos mercados externos, dos reajustes frequentes nos combustíveis, de dificuldades de abastecimento causadas por interrupções temporárias e da incapacidade governamental de fazer estoques reguladores. As estruturas dos índices de preços mostraram que a elevação maior se deu no núcleo de bens básicos, em especial alimentação, e não se trata de uma alta generalizada. O último fator que afeta atualmente os preços é a demanda. O poder de compra das famílias e a redução da massa salarial detectada indicam quão débil está a demanda doméstica. O consumo das famílias medido como percentual do PIB decresceu de 64.76% em 2019 para 62,71% em 2020, ou seja, dois pontos percentuais em um PIB que teve um decréscimo de 4,1%. As estimativas preliminares para o desempenho do varejo nesse primeiro trimestre de 2021 indicam uma queda ao redor de 5,5% em comparação com o último trimestre de 2020. Dados não faltam para mostrar uma retração generalizada da renda pessoal no país.
A elevação da Selic tem um impacto direto sobre a dívida pública. A sua rolagem custará mais e com isso haverá a necessidade de destinar recursos orçamentários adicionais para pagá-la, diminuindo ainda mais os já escassíssimos recursos necessários para atender às carências sociais e para investimentos. Com um PIB nacional de R$ 7,4 trilhões e aceitando o argumento de que a dívida pública se aproxima de 85% desse total, uma alta de 3% na taxa básica como pode ocorrer esse ano e como cobra o mercado financeiro (projeções Focus) implicará em uma sobrecarga de aproximadamente 189 bilhões de reais ao ano, ou seja, mais de quatro vezes o total destinado ao baixíssimo auxilio emergencial para os grupos sociais que não tem como sobreviver. Esse recurso adicional a ser pago de juros será deslocado desnecessariamente do orçamento público para todos os detentores de aplicações financeiras, concentrando ainda mais a renda no país.
Além disso, uma elevação de juros nesse momento, mesmo que a taxa real ainda se mantenha negativa, reduz o estímulo para se investir porque eleva o custo de financiamentos, em uma economia que mantém juros na ponta em valores exorbitantes, sem paralelos em outros países.
Assim sendo, pergunto aos leitores se não estamos de fato diante de uma profunda estupidez, que acaba sendo aceita como se fosse uma medida inevitável. Alguns jornalistas e articulistas da grande mídia e os economistas sempre ouvidos irão argumentar que não tinha outra alternativa a não ser essa de elevar os juros. Porém, eles não conseguem explicar o nexo causal que sustenta suas argumentações. Alguns aceitam a decisão sem entender e outros, porque a entendem muito bem e atuam em causa própria, defendendo os seus próprios interesses. Portanto, nessa seara econômica, tal como nos âmbitos social e político, vão se naturalizando medidas e discursos inconsequentes, sem que se vislumbre no horizonte a interrupção que resgate o país de um filme de horror.
* Doutor em Economia pela Unicamp; Mestre em Economia pelo IPE-USP, ex-professor UFES; Foi Diretor do BNDES (2012-2015). Autor do livro “Devagar é que não se vai longe – PPPs e Desenvolvimento Econômico”, recém-publicado pela Editora Letra Capital; Articulista de Debates em Rede e outras revistas e jornais.
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