Os ventos do Norte não movem moinhos
E o que me resta é só um gemido
“Sangue Latino” (Secos e Molhados)
Por Guilherme Narciso de Lacerda* e Roberto Garibe**
O presidente norte-americano, Joe Biden, acaba de anunciar um impactante plano de investimento. São mais de dois trilhões de dólares divididos em infraestrutura urbana e de transporte, pesquisa e desenvolvimento, formação profissional, estímulo aos pequenos negócios e cuidados com os idosos e pessoas com deficiência. Trata-se de uma proposta audaciosa para enfrentar a crise e ao mesmo tempo reposicionar a economia americana no cenário global.
Como se não bastasse o exemplo heterodoxo de fazer corar qualquer desenvolvimentista latino-americano, o plano será financiado por uma nova política de impostos. Propõe-se a elevar as alíquotas cobradas das corporações e dos mais ricos, além de evitar as brechas ao não pagamento de impostos, via paraísos fiscais ou via subterfúgios legais. Dessa forma, o financiamento do plano será fiscalmente progressivo. Aliás, medidas como essas estão sendo recomendadas pelo FMI em relatórios divulgados recentemente.
Enquanto isso, por aqui, as ações do governo Bolsonaro se resumem à realização de alguns leilões de concessões em diferentes modais de transporte. Uma das rodadas ocorreu no início de abril sob os aplausos efusivos do “mercado”. A propaganda fez o evento na Bolsa de Valores parecer uma queima de estoques. A chamada era Infra Week, assim mesmo, em inglês. Talvez o melhor seria Infra Sale Week, pois uma rodada de leilões em meio a uma crise econômica, dada a dificuldade em se estimar a demanda futura, somada à desvalorização recorde da nossa moeda, transformaram as concessões numa grande pechincha.
Mesmo com os apelos de propaganda, a promoção atraiu o interesse de poucos investidores. O resultado pífio era esperado. Afinal, quem se aventuraria em projetar um horizonte promissor a partir de um ambiente como o atualmente vivido no país? Ademais, as concessões não se amparam num plano consistente, como no passado recente, quando se assentavam no Plano Nacional de Logística e Transportes (PNLT). O modelo atual tem foco exclusivo no recebimento da outorga para fazer frente às metas fiscalistas. Para atingir seus objetivos e irradiá-los como grandes avanços, utilizaram-se de projetos que estavam adiantados, inclusive com percentuais elevados de obras realizadas anteriormente, como é o caso do trecho ferroviário da Fiol, entre Caetité e Ilhéus, concedido pelo valor mínimo a um único interessado.
O panorama atual é bastante diferente daquele das rodadas de concessões realizadas a partir de 2011, quando se buscava acomodar os passageiros aéreos, cujo número havia dobrado em uma década; havia filas de navios nos portos; estradas e ferrovias operavam no limite da capacidade de carga. Portanto, conceder a infraestrutura era uma maneira de somar esforços dos setores público e privado para superar os gargalos do país. Por essa razão, os editais de concessão sempre exigiam a antecipação dos investimentos previstos.
Dessa forma, não há o que comemorar ao observar a modéstia dos objetivos do governo. As intenções para a infraestrutura brasileira e norte-americana estão separadas por milhas de distância. O plano Biden traça uma estratégia de modernização econômica em um projeto de longo prazo, sob o conceito de sustentabilidade, focando na recuperação e financiado por mecanismos fiscais progressivos para enfrentar a crescente desigualdade de renda. Por aqui, as concessões são um fim em si mesmo, ou seja, apenas mais um modo de atender o apetite imediatista do mercado bursátil e reforçar o compromisso ideológico de diminuir o papel do Estado a qualquer preço.
Essa alternativa de liberalismo rudimentar já cobra o seu preço com a revelação das crescentes fragilidades de nossa economia, associadas a uma ambiência social e política que afugenta investidores. A teimosia reinante por aqui destoa profundamente dos novos ventos do Norte, que sopram uma política de investimento aliada à proteção social para o centro do enfrentamento da crise.
A liquidação de ativos públicos não vai reverter a pior taxa de investimento dos últimos 53 anos, nem mesmo a situação de anomia econômica ou a falta de emprego. Enquanto o país retorna ao mapa da fome e entregamos mais 11 nomes à lista de bilionários, os economistas alinhados ao governo interditam o debate sobre a taxação dos mais ricos e fazem loas entusiásticas a sucessivas reformas, sempre assentadas sobre a retirada de direitos sociais e sobre o acasalamento impróprio de uma política fiscal pró-cíclica com uma política monetária de uma nota só.
O exemplo norte-americano precisa ser debatido a fundo em nosso país, num momento em que perdemos espaço no cenário internacional. Há um interessante debate sobre as dimensões do que passam a chamar de bideneconomics. Vários analistas o consideram como o portal de um novo paradigma de política econômica, substituindo a prevalência de um neoliberalismo bem protegido por mais de quatro décadas. Outros, todavia, receiam que o projeto seja ousado demais e temem sua repercussão inflacionária. Seja como for, o Brasil, com a dimensão e complexidade que possui, não pode continuar com um debate econômico rasteiro. Não é possível que nos reste, tal como no verso em epígrafe, “só um gemido”. Quem sabe desta vez, ao contrário de nosso lamento, os ventos do Norte possam mover moinhos? E quiçá possamos, a partir deles, rever o receituário simplório de apenas reduzir o Estado.
*Doutor em Economia pela Unicamp, mestre em Economia pelo IPE-USP e professor aposentado do Departamento de Economia da UFES. Foi diretor do BNDES (2012-2015). É autor do livro “Devagar é que não se vai longe – PPPs e Desenvolvimento Econômico”.
**Economista, mestre em Administração Pública pela FGV e doutorando em Ciência Política pela USP. Foi diretor de Infraestrutura Logística e Energética do PAC e secretário de Infraestrutura Urbana na gestão do prefeito Fernando Haddad.
Obs.: Foto reprodução internet; Publicado também em o Valor.
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