Por Ailse Theezinha Cypreste Romanelli*
A escola era grande, no tamanho do prédio, no número de alunos e nos problemas. Era um tempo em que ninguém falava em eleição de Diretor; os candidatos (sempre homens) simplesmente, eram indicados e nomeados, ponto. Mas o diabo é que ninguém queria assumir a direção de tamanho abacaxi; sim, porque ainda por cima havia a conotação política.
O tempo ia correndo, o laissé faire crescia e nada ficava resolvido. Mulher na direção, nem pensar, ainda mais uma escola grande como aquela. Mulher não sabe comandar; não tem tino administrativo; não entende de números, quanto mais de orçamento... Um dia, o espanto. Dona Luzia aceitara dirigir a escola. Estava no Diário Oficial.
Foi recebida sem muito entusiasmo, teve de suportar as piadinhas masculinas e o despeito das colegas; mas foi em frente. Sabia que outras pessoas haviam sido consultadas e/ou convidadas mas não tiveram coragem assumir. Um tanto insegura, mas muito determinada, teve medo de não dar conta dos problemas, que ela sabia, bem grandes. Mas empinou o nariz e encarou o desafio.
Decidiu ir devagar e na medida do possível, resolver caso por caso. Ela sabia que todos esperavam pelo seu fracasso. Levou tempo para conhecer bem o estabelecimento: dar aulas é uma coisa; administrar é bem diferente, saber tudo sobre o que está funcionando e o que precisaria de reparo. Depois foi a vez dos funcionários, muitos bem antigos, prestes a se aposentar; outros mais novos ainda pegando o passo da escola. Finalmente os alunos, o velho problema da disciplina e o novo, as drogas, vendidas dentro da escola; as brigas de gangues rivais; apavorada, descobriu que o chefe do tráfico e alguns comparsas, travestidos de alunos, estavam regularmente matriculados e em plena atividade comercial no curso noturno.
Enquanto se amargurava pensando no tamanho do imbróglio em que se metera, planejava suas ações que ia executando, com firmeza, com reuniões freqüentes em que pedia a colaboração de todos e cobrava resultados. O tempo passou, algumas coisas foram se ajustando mas a rejeição continuava.
Um dia, no auge do verão, com o sol entrando pelas varandas, um calor infernal em qualquer lugar por onde andasse, amaldiçoava os brise-soleil, tão celebrados pelo arquiteto, mas que eram o mesmo que nada. Não resistiu. Abriu a primeira torneira que encontrou e se refrescou jogando água no rosto e molhando os braços até os cotovelos. Mas parou enojada. O que era aquilo? A água cheirava mal.
Chamou um aluno que passava e pediu que ele avaliasse a água. – É assim mesmo, dona Luzia; o cheiro da água é esse mesmo.
Luzia não se conformou. Não era possível que a água cheirasse tão mal. Chamou um dos funcionários da limpeza, fez o mesmo pedido e ouviu a mesma coisa.
Reunia a turma mandou que examinassem a caixa d’água. Os funcionários voltaram meio que escabreados. Gaguejando bastante fizeram seu relato. A caixa d’água era enorme; estava sem tampa mas não se via a água. Na superfície havia uma camada grossa de folhas apodrecidas, insetos, borboletas, morcegos e pássaros mortos além de lixo variado.
Inseguros diziam: “O que é que a gente vai fazer?” “- Esvaziar a caixa e limpar tudo!” Explodiu Luzia. – Chamem o pessoal da limpeza. Quero todo mundo na minha sala.
A turma reunida, Luzia quis saber quando foi a última vez que a caixa d’água havia sido lavada e porque estava sem tampa. Mesmo os mais antigos funcionários não se lembravam do fato, até que um dos mais velhos se lembrou de um certo Diretor que havia mandado lavar a caixa. Coisa de uns oito anos atrás, mais ou menos.
Luzia, horrorizada, dispensou os funcionários e telefonou para a Secretaria da Educação mas não para pedir autorização; para surpresa geral, simplesmente comunicou o fato e foi logo avisando que iria suspender as aulas para que a caixa d’água pudesse ser limpa. O pessoal se surpreendeu.
Esvaziada a caixa, surpresa: a camada de lodo depositada no fundo era impressionante, um metro talvez. Devidamente fotografada, a caixa foi limpa, desinfetada e novamente cheia. Mas Luzia não descansou. A questão das drogas na lhe saia da cabeça. Como fazer? Reuniu os professores para discutir o fato. Iria falar diretamente com o líder da operação, aluno do curso noturno. Ouviu várias opiniões, alguns conselhos, mais outro tanto de desaconselhos da turma do deixa disso. Pediu ajuda e, sem muito entusiasmo, alguns professores se dispuseram a ajudar. “– Nós vamos junto para dar uma força.” mas, na realidade, todos achavam que ela não teria coragem; mas agendaram uma data e ela esperou.
No dia marcado, ninguém apareceu, só o traficante esperava por ela na sala da Direção. Luzia entrou em pânico. O coração parecia que ia sair pela boca; respirava com dificuldade; mas não desistiu. Só pensava: - Cadê os professores que estariam aqui, comigo? Não havia ninguém mais na escola. Estava sozinha.
Sentou-se rapidamente, mesmo porque estava com as pernas bambas. Debaixo da mesa era difícil controlar os joelhos. Como tremiam..... Olhou o traficante, um rapaz novo, entre dezoito e vinte anos, com jeito de menino, e lhe disse: - Senta aí, meu filho.
Ele se sentou diante dela, e logo tirou a arma da cintura, um grande 38, que colocou sobre a mesa. Luzia tremia da cabeça aos pés, procurando, com todas as forças, controlar-se para que o outro não percebesse que ela estava morta de medo. Mas foi em frente. Com o jeito manso, que lhe era peculiar, falava baixo, pausadamente, mas também porque precisava dominar o queixo que tremia.
Depois de discorrer sobre os danos que as drogas causam, passou a citar os riscos que o menino corria, da possibilidade de morrer cedo, bobamente, numa guerra de gangues. Percebeu que ele ouvia com atenção mantendo uma atitude respeitosa e, mais calma encerrou a conversa: - É isso aí, meu filho. Pensa com carinho em tudo que lhe falei.
O rapaz se levantou recolheu sua arma e calmamente disse: - Tudo bem dona Luzia. Vou atender a senhora. Vou cancelar minha matrícula e vou recolher meu povo. Não quero mais aborrecer a senhora. Com todo respeito, gostei muito da sua fala. Foi a primeira vez na minha vida que alguém me chamou de meu filho. E saiu.
Luzia, pregada na cadeira, chorou. Levantou-se, apagou a luz e vagarosamente fechou sua sala. Não havia ninguém com quem dividir a emoção. No pátio, só o vigia. Despediu-se dele e foi embora.
No dia seguinte, para surpresa de todos, o rapaz cumpriu a palavra. Luzia silenciou sobre o ocorrido, mas de vez em quando refletia: Mãe! Que força você tem...
*Academia Feminina Espírito-santense de Letras
Cadeira nº 25