Fabrício Augusto de Oliveira*
Depois de avançar consideravelmente na destruição da bioesfera, hoje com capacidade limitada a pouco mais de 50% de atender as necessidades básicas da população, e de transformar no mundo uma legião apreciável de excluídos do sistema e de pobres sem direito sequer à alimentação, em nome da obtenção do lucro máximo, o capitalismo ensaia uma mudança para atenuar essa situação, aparentemente forçado a reconhecer de ser a mesma insustentável e capaz de conduzir ao seu colapso como modo de produção.
Não é a primeira vez que isso ocorre. Na Grande Depressão da década de 1930, a situação de penúria que atingiu grande parte da população mundial, acirrando os conflitos sociais e colocando sérios riscos para sua substituição pelo comunismo, o capitalismo foi obrigado, para não sucumbir como sistema, a diminuir seu apetite pelo lucro máximo, aceitar, a contragosto, a criação do Estado do bem-estar e admitir a cobrança de impostos sobre o capital e a população mais rica. De acordo com Piketty, foi um dos períodos de sua história em que a desigualdade mais diminuiu, assim como as suas crises se tornaram menos severas e menos rotineiras.
Essa não constitui, contudo, a natureza do capitalismo, um sistema que, apesar de revolucionário no desenvolvimento das forças produtivas, como o próprio Marx reconheceu, tem por característica a exclusão das classes menos favorecidas da população de seus benefícios e o desdém com a produção da miséria para não ter de repartir seus ganhos com os que considera párias. Assim, tão logo a lembrança dos anos trágicos da década de 1930 começou a esmaecer e o sonho comunista se desfez com o colapso da União Soviética, o sistema retornou à sua trajetória original, especialmente a partir da década de 1990, procurando desmontar o Welfare State, condenar as políticas econômicas e tributárias que favoreciam as populações menos favorecidas, dando novo impulso ao aumento das desigualdades e à destruição do meio-ambiente para garantir a obtenção do lucro máximo.
Como a história bem ensina, mas os economistas a serviço do capital preferem ignorar, nenhum sistema é capaz de sobreviver se não criar condições para garantir a reprodução da população e não a de alguns poucos privilegiados, ao contrário da preocupação dos economistas clássicos. Para ficar com um exemplo, Engels, em A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, relata inúmeros casos de sublevação da população marginalizada contra o sistema que lhe negava condições para sua reprodução e de seus familiares. No afã pelo lucro, o capitalismo pouco se se importou com isso, assim como os teóricos do mainstream, mas conseguiu ir além de produzir crescentes desigualdades, avançando na destruição da natureza e aplaudindo a prática de atividades ilícitas e antiéticas de empresas, sempre em nome da obtenção do lucro máximo, métrica pela qual se avalia seu sucesso.
A crise provocada pelo coronavírus escancarou o tamanho da desigualdade existente no mundo capitalista, ampliando-a e desvelando a necessidade de o sistema corrigir minimamente seus rumos para não ser tragado por uma hecatombe social. Embora os economistas paladinos do capital e das camadas mais ricas continuem batendo cabeça para ajustar seus modelos buscando conciliar o papel do Estado na nova realidade, que se descortinou desde a crise do subprime de 2007-2009, com a exigência da disciplina fiscal, visando continuar garantindo a estabilidade macroeconômica, uma nova realidade vai se impondo, fora de seus textos teóricos, para adaptar o sistema a estes novos tempos e garantir sua continuidade.
Nessa mudança ainda em curso, a sigla em inglês ESG representa o conceito que a orienta. Em seu conjunto, o conceito combina a preocupação com a preservação do meio ambiente (E), dada pelo compromisso com a redução das emissões de gases poluentes e a gestão adequada de resíduos sólidos, com a adoção de medidas para reduzir as desigualdades e defender os direitos humanos (S), e com mudanças para tornar o ambiente corporativo (G) mais transparente e protegido de práticas anticorrupção e comprometido com valores éticos.
Pensando estritamente em termos da natureza do capitalismo, isso representaria uma verdadeira revolução no sistema, pois a obtenção do lucro máximo que guiou sua trajetória até os dias atuais seria substituído pelo que chamam de lucro sustentável, à medida que as empresas não poderiam mais, sob o risco de serem canceladas pelo consumidor, de continuar destruindo a natureza para se darem bem economicamente, de cometerem fraudes em seus balanços e práticas de sonegação de tributos, além de o sistema ter de ajustar seus instrumentos para reduzir as gritantes desigualdades existentes, o que significa abrir novamente os caminhos para o Estado desempenhar funções distributivas.
Se tal tendência é incompatível com a natureza do capitalismo, um sistema que protege e favorece apenas os donos da riqueza, e que os economistas a seu serviço se dedicam a construir modelos para justificar a necessidade de sua proteção, recomenda-se ao capital prestar mais atenção a este processo, principalmente nas economias emergentes onde predominam atividades nocivas ambiental e socialmente dependentes das velhas formas de produção.
O período de carros e de fábricas altamente poluentes e das atividades produtivas que drenam exageradamente os recursos da natureza, caso das atividades agropecuárias e da confecção de roupas, por exemplo, começam a ser condenadas e não parecem ter futuro neste novo quadro, exigindo novas tecnologias de produção e investimentos para participar do mercado. Afinal, passa-se a reconhecer que não somente a bioesfera apresenta limites para sua exploração como o avanço escandaloso da desigualdade representa o passaporte seguro para o seu colapso.
Embora ainda em fase incipiente, a defesa deste novo conceito já conta com o apoio e adesão dos países da Europa, dos fundos financeiros globais, que estão condicionando a destinação de seus recursos em investimentos para países comprometidos com um capitalismo mais inclusivo, com uma agenda ambiental, social e de governança corporativa, o mesmo acontecendo nos Estados Unidos com a política comandada pelo presidente Joe Biden.
Sem dar ouvidos aos gurus da economia aferrados à disciplina fiscal, dos planos aprovados e anunciados por Biden, o American Jobs Plan contempla investimentos para renovar a estrutura logística dos Estados Unidos e reorientar setores para tratar adequadamente do meio ambiente, enquanto o American Families Plan destina volumosos recursos para as famílias mais pobres e para as de classe média, os segmentos mais afetados pela pandemia.
Neste novo paradigma, as empresas que a ele não se ajustarem correm simplesmente o risco de serem canceladas e serem expulsas do mercado. É a nova realidade se impondo novamente ao capitalismo que, como camaleão, está sendo obrigado a mudar de vestes para manter-se dominante e não renunciar ao lucro, mesmo que não seja o lucro máximo predatório para a sociedade. Como – e se – essas novas variáveis vão caber nos modelos econômicos dos economistas matemáticos, geralmente divorciados da realidade, é algo que só o futuro pode dizer.
*Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Uma pequena história da tributação e do federalismo fiscal no Brasil”
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