Ailse Therezinha Cypreste Romanelli*
Se vivo fosse, neste ano Paulo Freire completaria cem anos e entre as últimas do nosso FeBeAPá destaca-se a afirmação: “para consertar a educação do país é preciso arrancar Paulo Freire do MEC”. Tudo coisa de gente novinha; que não o conheceu e duvido que tenha lido, ao menos, um livro dele. E se leu, não entendeu.
Sempre desconfio depois que ouvi palestrante famoso atribuir a Paulo Freire a frase “ninguém ensina nada a ninguém” para vender a ideia de que o professor não é um ensinador, isto é, não deve ensinar. Achei estranho e procurei a obra em questão. Em mais de uma página, Freire usa a frase para descrever a aprendizagem como um processo interno ao estudante. Entretanto o palestrante desprezara o antes e o depois da citação, destacando apenas a frase solta. E o fake virou verdade.
Lá atrás, nos anos 60, Paulo Freire era um simples professor de um curso noturno de alfabetização de adultos. A maioria de seus alunos vinha dos canaviais ou da construção civil, um pessoal sofrido, triste, sem perspectiva de futuro ou melhora de vida. O principal recurso de ensino era uma cartilha muito conhecida na época, adotada nas séries iniciais do Ensino Fundamental das escolas públicas e particulares da região. Porém, embora a cartilha fosse um sucesso no Ensino Fundamental, não era esse o caso das turmas de Freire; dispersas e desinteressadas, não gostavam das aulas, a aprendizagem era lenta e pouco produtiva. Como os alunos, em sua maioria, trabalhavam na construção civil, Freire resolveu apelar para a vivência e a fala cotidiana do grupo, abandonou a cartilha e destacou a palavra tijolo; os alunos reagiram bem e ele percebeu que talvez fosse o caminho.
Este causo é contado em um de seus livros, citando uma das frases da cartilha anteriormente usada, agora transformada em mantra: “Eva viu a uva”, e comenta: . “Eva não é um nome comum nos nossos sertões e era pouco provável que aquelas pessoas soubessem o que seria uma uva.” Assim nasceu a famosa cartilha onde a primeira palavra era tijolo depois vinha alagado, as palafitas onde morava a população mais pobre, depois urubu e depois... não me lembro mais.
Impressa em preto e branco, uma edição simples, tamanho A4, grampeada na horizontal como um caderno de desenho, a cartilha foi um sucesso. Em menos de três meses toda a turma estava lendo. Paulo Freire virou referência nacional.
Ele intuiu que o programa anteriormente usado, era inadequado, pois tentava motivar adultos usando um livro escrito para crianças. Um texto que não fazia sentido para homens exaustos, após um dia inteiro carregando cimento e batendo massa. Eram trabalhadores que chegavam à escola extenuados, desanimados e sem esperança, indignados com a maneira com que eram tratados. Muitos não conheciam seus direitos trabalhistas, poucos tinham carteira assinada. Era preciso trazer esse pessoal à vida, e Freire replanejou seu trabalho.
Em vez de considerar as disciplinas separadamente, Freire montou seu plano de curso reunindo os assuntos em torno de temas geradores, conjuntos que chamou de centros de interesse buscando aulas mais ativas, pois já havia percebido que vários alunos dormiam com as explicações. Assim, a partir das palavras-chave da cartilha, ele conduzia uma discussão levando os alunos a se perceberem como seres pensantes, pessoas capazes que poderiam, mediante o estudo, obter empregos melhores, reconhecer seus direitos e progredir em sua qualidade de vida.
Entretanto tal discussão nunca era de improviso. Além de cuidadosamente planejada, era de fato, dirigida, conduzida pelo professor, visando aos objetivos da lição, ou seja, os alunos aprendiam a reconhecer e desenhar palavras, identificando seus significados e onde tais significados se encaixavam em suas vidas e em sua realidade de trabalho.
Aos poucos, além de aprender a ler, todos foram tomando consciência de si mesmos, passando a reivindicar melhores condições de trabalho o que, evidentemente, abalou os setores competentes. Estávamos numa ditadura; Paulo Freire acabou preso, sua cartilha foi recolhida e ele teve de sair do país.
Na época, a alfabetização dos adultos resumia-se na decodificação do texto. E só. Freire encarou seus alunos como iguais, seres humanos inteligentes que só precisavam de uma oportunidade e alguém que os ajudasse a crescer intelectualmente; fez os alunos sentirem-se prestigiados, tratados como pessoas com potencial para aprender e evoluir. Na verdade ele criou uma nova maneira de alfabetizar adultos que revolucionou as concepções em uso; depois dele a UNESCO ao padronizar as estatísticas educacionais dos diversos países, modificou sua definição de alfabetização.
Mas Freire trabalhou só com adultos; ele nunca alfabetizou crianças. Focado no aluno defasado, criticava duramente as metodologias de sua época, todas na tentativa de ensinar adultos como se fossem crianças. Além disso, não existe um método Paulo Freire, ele próprio afirma isso em sua obra Educação como prática da liberdade. Sua aula dialogada é apenas uma boa técnica de ensino, sempre muito bem planejada a mergulhar, com segurança, no conteúdo a ser ensinado.
Cheguei a trabalhar com a cartilha de Freire, uma edição colorida em papel jornal. Em plena ditadura alguém resolveu que ela poderia ser usada nas aulas de Prática de Ensino do curso de Pedagogia. Logo percebi o erro de tal decisão. Não se pensou nas crianças; o que se queria era provar um ponto de vista pessoal. Não importava se estávamos cometendo o mesmo erro que Paulo Freire tanto combateu, ou seja, apresentando às crianças uma cartilha de adultos.
Sem poder de decisão, não disse nada; esperei pelo desastre. E veio!. Um fracasso retumbante! As crianças detestaram a cartilha que logo virou a cartilha do urubu e teve de ser abandonada. Era imprópria para menores. Não durou nem o suficiente para a polícia vir atrás de nós. Ainda bem! Só me arrependo de não ter ficado com uma.
O grande mérito de Freire foi tratar os alunos como iguais, acreditando e investindo neles como seres humanos. Discutindo as palavras-chave da cartilha conduzia a turma a uma “reflexão sobre sua própria capacidade de pensar, e sobre seu lugar no mundo”. Cada palavra aprendida era ampliada em seu significado e ao alfabetizar, ele ia muito além da técnica mecânica de codificar / decodificar vocábulos, para desenvolver uma atividade de reflexão e de conscientização. Porém, esse seu método tão falado e elogiado, aquele que deveria ser estudado e aplicado por todos os professores, é justamente o que nem sempre se faz.
Dentro e fora da sala de aula, sempre ouvi relatos de que na escola pública, especialmente as de periferia, há professores que tratam os alunos como inferiores, desdenham sua pobreza, veem com ironia sua carência cultural, e os desmerecem com expressões depreciativas.
Descobri também que muitos professores supõem que as aulas dialogadas são improvisadas no momento, isto é, não precisam ser planejadas. Diziam: “Escolhemos um tema da hora, levantamos a discussão, todos os alunos participam....”. Entretanto, é uma discussão vazia onde se deixa de ensinar aquilo que o aluno deveria aprender. Um faz de conta. E o professor se gaba de estar usando o “método Paulo Freire”. Entretanto, em seu excelente Medo e Ousadia ele é bastante enfático: “a educação é uma atividade eminentemente diretiva”
Para completar, fico sabendo de estudos recentes em que se descobriu que para os alunos negros as avaliações têm conceitos piores do que os dos alunos brancos, embora com os mesmos resultados.
Se a escola é ruim e a educação vai mal, que se pesquisem as causas. Certamente não estão em Paulo Freire.
*A autora é Mestra em Educação e ocupa a Cadeira nº25 da Academia Feminina Espírito-santense de Letras