Por Erlon José Paschoal *
Mia Couto nasceu em 1955 em Moçambique, filho de imigrantes portugueses, e se tornou um dos escritores mais expressivos do continente africano. Trabalhou como jornalista, formou-se em biologia, especializou-se em ecologia e atualmente é professor universitário e diretor da empresa Impacto – Avaliações de Impacto Ambiental. Tem mais de 30 livros publicados, muitos traduzidos para inúmeros idiomas. Entre as premiações mais importantes que recebeu estão o Prêmio Camões, o Prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e o Prêmio União Latina de Literaturas Românicas.
Exímio contador de histórias tendo como referências a natureza, as tradições regionais, os mistérios, as crenças e a criatividade, marcantes em seu país de origem, Mia Couto publicou também várias obras de uma poesia vigorosa e envolvente como, por exemplo, os livros “Tradutor de Chuvas” e “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”.
Mas dizem que para se acercar melhor de sua obra e de sua poética, um bom caminho seria ler o romance “Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra”, publicado no Brasil pela Editora Companhia das Letras. O enredo é simples: trata-se do retorno do jovem Mariano à sua terra natal – a ilha Luar-do-Chão, origem da família Malilane, ou no aportuguesamento, os Marianos - para conduzir a celebração do funeral de seu avô, Dito Mariano, supostamente morto. Ao chegar, Mariano avista o corpo do avô estendido sobre um lençol no chão da sala da casa da família, que teve o seu teto retirado, de acordo com as tradições locais, para que o céu – diz o narrador – “se adentre nos compartimentos para limpeza das sujidades. A casa é um corpo – o tecto é o que separa a cabeça dos altaneiros céus!”
O rio, o tempo, a casa, a terra, os ancestrais, compõem na narrativa um todo único e se configuram mutuamente, apesar da destruição causada por séculos de colonização portuguesa. O universo mágico – como em um romance de Gabriel Garcia Marques – alinhavado por neologismos diversos criados pelo autor, formam uma atmosfera própria, poética e mítica, real e imaginária, tradicional e moderna, tudo embalado pelo ritmo dos meandros do rio Madzimi, que separa a ilha do continente, e pelos elementos da natureza, sempre mantendo vivos o interesse, a curiosidade e a imaginação do leitor.
As contradições e os conflitos sociais de uma Moçambique pós-colonial também estão presentes nas relações entre os personagens e na luta cotidiana de um país em busca de sua identidade após décadas de guerras internas, de tradições milenares destroçadas, e ameaçado agora por um capitalismo avassalador, tão destrutivo, tão cruel e tão egoísta quanto os senhores e proprietários dos tempos coloniais.
A princípio, a terra se nega a receber o cadáver do avô, pelo menos até que fatos importantes da história de vida dos personagens e do lugar fossem devidamente esclarecidos como, por exemplo, o narrador descobrir que na realidade seu avô era seu pai e sua tia a sua verdadeira mãe, e assim saber de fato como o velho Fulano Malta conheceu um dia a Mariavilhosa, que viriam a ser considerados seus pais. Ela chegou à cidade como um Diadorim, disfarçado de marinheiro, por quem Fulano Malta se encantou, olhando-a “embevecido, nos gestos dolentes e frágeis do marinheiro”, mas, ao mesmo tempo, atormentado por intensos conflitos interiores por não admitir qualquer atração por outro homem, até descobri-la mulher e se casar com ela.
Depois de reveladas as verdades, a terra aceita então acolher o corpo do defunto – agora dado realmente como morto – e a realidade pode prosseguir com seus desígnios. Afinal diz o autor: “A vida é um fogo, nós somos suas breves incandescências.” Assim se fecha o ciclo, e o neto pode voltar à cidade e se despedir da ilha, da casa, da família e do passado.
E na última das inúmeras cartas dirigidas ao neto, que era, na verdade, seu filho - escritas aliás por ele mesmo em uma espécie de estado de encantamento -, o avô diz: “Você, meu neto, cumpriu o ciclo de visitas. E visitou casa, terra, homem, rio: o mesmo ser, só diferindo em nome.”
Um livro que inspira compreensão, amor, deslumbramento, ambientado em meio a uma realidade contraditória de um continente espoliado e revirado do avesso por séculos de dominação e de violência. Essas histórias, afirmou certa vez Mia Couto em uma entrevista: “nascem da entrega aos outros, da capacidade de escutar a alma das pessoas que a vida tornou mudas e invisíveis.”
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, Escritor e Tradutor de alemão.