Por Ailse Therezinha Cypreste Romanelli
É março, hora de comemorar o Dia Internacional da Mulher, um passinho adiante na eterna luta por um mínimo de igualdade numa sociedade ainda muito, muito, muito masculina.
Até que já se avançou bastante. Ao menos a mulher já não é mais vista como a produtora de filhos, braços para o trabalho e guerreiros para a segurança e expansão da tribo. Como símbolo da fertilidade, também devia espalhar as sementes e cuidar da colheita. O marido era o amo e senhor e a mulher uma serva submissa, como diz a Bíblia. Igual? Nunca!. Dessas considerações, sem quê nem porquê, do fundo do baú, saltou Antonia.
Antônia foi uma das minhas alunas no curso de magistério. Seu nome não era esse; mas não importa, era apenas mais uma menininha cheia de sonhos e duramente castigada pela vida apenas por ser mulher e se parecer com a mãe; e pior; tinha o grave defeito de querer estudar para ser professora. A família, o pai e um irmão, queriam que ela arranjasse um emprego de doméstica “para por mais dinheiro dentro de casa”. Ser professora era “coisa de gente rica”.
Nas aulas não era das mais destacadas, mas aquele tipo que prefere se manter invisível na turma. Porém, de vez em quando, vinha conversar comigo para desabafar as tristezas de um vida solitária, policiada, de um lado por um irmão mau caráter e de outro por um pai violento, que a identificava com a mãe há muito ausente. Não me lembro mais se a mãe estava morta ou se simplesmente sumira no mundo, em busca de uma vida menos sofrida; o certo é que o pai atribuía à menina todos os defeitos antes encontrados na mãe o que transformava sua vida em um inferno de culpa, punições e cobranças absurdas.
Além de todo o serviço da casa, sem direito a ter amigas a quem visitar ou a quem receber em casa para estudar junto, Antonia ia vencendo com dificuldade as exigências do curso. Ir ao cinema? Nem pensar! Passear na pracinha e talvez tomar um sorvete com as amigas? Desistiu. Da última vez, levara uma surra do pai pois o irmão dissera em casa que ela estava com um namorado; era mentira mas o pai não acreditou: ”mentirosa e falsa como a mãe”.
Um dia Antonia sumiu. Com tantas faltas, a escola procurou saber o que havia, mas o O pai, simplesmente disse que ela estava doente; inconformadas, as colegas, procuraram respostas e por meio dos vizinhos souberam que, profundamente estressada, Antonia tinha sido internada numa clínica como “louca varrida” nas palavras do irmão.
Muitos meses se passaram e aquele ano escolar ficou perdido. Quando Antonia retornou teve que repetir a série e a vida seguiu.
Um dia, chego para a aula e encontro a turma alvoroçada, Antonia tinha sido presa e pedia que eu fosse vê-la na cadeia. Pronta a atender o chamado da menina, que nem dezoito anos tinha, fui tranqüilizada pela Direção pois dois professores, ambos advogados, já tinham resolvido o caso; Antonia já estava em casa.
O fato é que o irmão acusou-a de ter roubado um relógio dele e chamou a polícia. Aos policiais ele pediu que revistassem as gavetas dela; o relógio foi achado e ela levada para a Delegacia, chorando desesperada porque não podia deixar, sozinho, o filho que devia amamentar. Os policiais não acreditaram e ainda debocharam dela porque era só uma menina; “ que filho, nada!” O irmão, por sua vez, confirmou que não havia filho e ela foi parar atrás das grades.
Quando retornou às aulas, delicadamente procurei saber do filho e ela me contou, chorando, que depois que teve alta da clínica, voltou para casa, agora rotulada de mentalmente desequilibrada, um dia se descobriu grávida. Só podia ter sido na clínica.
Sem acreditar na filha que nem namorado tinha, o pai bateu tanto nela que os vizinhos correram para acudir. “ Enquanto meu pai me batia, professora, eu pedia a Deus para abortar!” ela me disse.
Desorientada e desesperada foi acolhida por uma vizinha que lhe deu um balsamo para passar no corpo machucado pelas pancadas; lembrou que, na clínica, sempre, depois do café da manhã recebia alguns remédios e uma injeção que a fazia dormir. E chorando, ela me dizia: “Professora, eu passava o tempo todo dormindo; agora, como vou saber quem abusou de mim?”
Protegida e amparada por vizinhos bondosos a criança nasceu. Antonia quis saber do médico se era possível saber exatamente quando ficara grávida e explicou a razão. O médico horrorizado e penalizado conversou com o pai dela; confirmou que não era um feto prematuro, mas uma criança de nove meses, portanto ela só poderia ter engravidado no período em que estivera na clínica. Caberia uma ação na justiça, mas como identificar o autor do feito? Advogados custam caro e eles não tinham dinheiro, assim entendeu o pai que, ao menos, parou de espancá-la. Mas o irmão continuou a infernizar a vida dela.
Antonia não deixou a escola. Acompanhei seus estudos, ouvindo suas queixas, apoiando, incentivando, ajudando a superar suas dificuldades, O mesmo fizeram suas colegas dando força para que continuasse os estudos. Com muito sacrifício, mas com muita determinação, Antonia concluiu o curso, recebeu seu diploma, ingressou na carreira, escolheu uma escola em outra cidade e se foi.
Vítima do preconceito, ainda bem que escapou com vida. Todos os dias mulheres são desrespeitadas, humilhadas, desqualificadas, espancadas ou mortas. Maus tratos, facadas, tiros, sabe Deus o que mais. Apesar de todas as conquistas, infelizmente.
A estrada é longa e ainda há muito o que caminhar e sofrer nessa batalha, até que um dia você, mulher, possa ser tratada como igual e ter o respeito que merece como ser humano.
Ailse T.C.Romanelli é mestra em Educação e membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, cadeira nª 25