Frederico Bussinger*
O que era hipótese no último artigo ficou ainda mais claro: verticalização entrou de vez na pauta portuária. E, de quebra, vem possibilitando matarmos saudades do velho e bom debate, meio em desuso no Brasil desse Século XXI. Além de artigos, que se multiplicam na imprensa expressando visões distintas, o TCU vem de promover um debate público (“Análise concorrencial no setor portuário” – 26/MAI/2022) que abrangeu o tema.
Tais iniciativas não estão entre os papeis cogitados para o órgão por Ruy Barbosa, então Ministro da Fazenda, seu criador. Nem no art. 89 da 1ª Constituição Republicana (1891): “liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso”. Não chega, todavia, a ser uma surpresa pois, ao longo desses 132 anos, o TCU vem alargando seu rol de atribuições e atividades para hoje abranger fiscalizações e decisões sobre atos de gestão, contratos, licitações, regulação, programas (de governo) e políticas públicas. Nos primórdios só atuava a posteriori; hoje também a priori.
Mais recentemente, ante o vácuo deixado pelos poderes executivos, que passaram a privilegiar a divulgação/promoção de suas ações, redes sociais, “road shows” e “market sounding” (nome chique para algo como reuniões/audiências privadas; em paralelo e, normalmente, antecedendo as Audiências Públicas), o órgão achou por bem agregar uma nova atividade/produto: os “Diálogos Públicos”. Bem... como no dito popular, “se não tem tu, vai tu mesmo”. E palmas para o TCU pelo resultado!
Ele só não leva nota máxima porque, entre a dúzia de painelistas, não incluiu porta-voz dos (pouco organizados) clientes-finais, os donos de cargas (mais de 80.000 empresas, segundo a USUPORT): só convidou para a mesa agentes públicos, consultores e representantes de prestadores de serviço; elos da cadeia logística (armadores, arrendatários, TUPs e TRAs).
Talvez não tenha sido mero esquecimento; mas um equívoco conceitual: apresentações e debates se sucederam como se apenas o armador fosse cliente dos terminais; deixando à margem um segmento que aporta de 25% a 55% das receitas dos terminais (segundo 2 dúzias de especialistas, executivos e dirigentes de entidades do setor consultados): não há estatísticas oficiais e os números são imprecisos; mas o certo é que, em qualquer hipótese, são atores relevantes; não parece? O TCU fica, assim, devendo uma nova rodada; agora incluindo representantes dos clientes finais, frente à frente com os prestadores de serviço.
O estopim desse processo de discussão foi a modelagem do STS-10 (mega-terminal de contêineres no Porto de Santos), previsto para ser leiloado ainda este ano. Mas o desenlace da discussão pode assentar conceitos e jurisprudências mais abrangentes. Também ter repercussões sobre a desestatização da SPA (Administradora do Porto de Santos) e, no limite, dependendo do resultado daquele leilão, impactar também a cabotagem brasileira; agora sob os marcos regulatórios da “BR do Mar”.
O evento
Ele teve dois tempos distintos (clássico bordão de comentaristas esportivos). No segundo painel, mais na linha do dever ser, viu-se o porto apresentado com base em categorias, conceitos, algoritmos e/ou modelos usados pela comunidade e cultura regulatória, ou de defesa da concorrência. Por vezes a ideia/sensação era de ver-se, em realidade virtual, um porto “metaversado”. De qualquer forma, ainda que em tese, o painel valeu pela sistematização do significado e mecanismo das regulações ex-ante e ex-post.
Já no primeiro painel, viu-se mais “o porto como ele é” (parodiando Nelson Rodrigues). Contou com um empolgante “Fla X Flu” (Caputo-Jesualdo X Loureiro-Montenegro): quem se desconcentrasse para ler mensagens no celular (o evento foi virtual), corria o risco de perder algo importante!
Ao final, até mais que os dados, informações e descrições aportados, sua grande contribuição foi a explicitação de interesses privados envolvidos: claro que legítimos; mas nem sempre sintônicos com interesses públicos. A propósito, quando “interesse” passará a ser variável de planejamento? Ou seguiremos com a narrativa de que planos resultam, apenas, de boas intenções e boas ideias?
Os painelistas fizeram o dever de casa, se prepararam bem (possivelmente contaram com consultorias), e defenderam competentemente os interesses representados e seus pontos de vista. Palmas também para eles! Mas, além das palmas, uma ponderação e sugestão em prol da transparência – válida também para os articulistas: no caso de eventualmente estar contratado por alguma das partes envolvidas nesse debate, que tal declará-lo? Nenhum problema em estar; mas leitores e audiências têm o direito de sabê-lo; não?
O evento foi importante, desde logo, como subsídio para se desembaralhar alguns termos/conceitos: i) Verticalização é o nome do filme. Mas ora era referida no sentido de verticalização operacional (tema antigo e surrado), ora mais como verticalização patrimonial/societária. ii) Custos vêm sendo mencionados com diversas acepções; o que pode ser uma armadilha: preço/tarifa para uns pode ser custos para outros. P.ex: parte do que os terminais cobram dos armadores (preços dos terminais), são custos que compõem o frete (preço do armador).
O que está em questão?
No mérito, verticalização operacional não foi arguida: aparentemente há um consenso de que, além de inevitável, ela é importante instrumento de eficientização logística e redução de custos: a discussão se desloca, então, para a apropriação desses ganhos; uma intrincada análise/discussão técnica mas, antes de tudo, “briga de cachorro grande”!
Como consequência, cada parte redirecionou o problema no painel; evidentemente segundo seu ponto de vista e/ou interesse:
Para os terminais (portuários e retroportuários): o foco foi a “self preferencing”, que estaria sendo atualmente praticada. É a justificativa utilizada para defesa da necessidade de limitação à participação no leilão do STS-10 (portanto de verticalização societária). Isso seria uma forma de minimizar o risco de monopólio e/ou “abuso de posição dominante”.
Para os armadores, que arguem de partida a pertinência do termo “verticalização” (preferem “integração operacional”), e também acham desnecessários esses debates: o foco são os gargalos de capacidade nos terminais (presentes e futuros). É a base para defenderem a inexistência de tais limitações, advogando ser este o melhor caminho para facilitar a atração de investimentos e impulsionar as expansões necessárias.
Do que se depreende das exposições dos agentes públicos, regulação ex-ante (uma “vacina”) só será adotada/praticada em último caso: argumentam haver instrumentos ex-post eficazes. E, também, que Antaq e a regulação setorial estão “maduras”; o que foi reafirmado diversas vezes. A tenacidade com que cada parte defende suas posições induz imaginar, no mínimo, haver outras questões que ainda não vieram à baila. A ver!
Há muito a ser divulgado e esclarecido. Há controvérsias medulares. Há muito a ser aprofundado. Por isso, benvinda a volta dos debates!
* Engenheiro Eletricista e Economista, Pós-graduado em Engenharia, Administração de Empresas, Direito da Concorrência e Mediação e Arbitragem.
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