Por Aylê-Salassié Filgueiras Quintão*
Essa história de queimadas na Amazônia ainda vai "dar panos pra as mangas". Fragiliza a ideia da competência do governo brasileiro para administrar o problema e a crença nacional de que a "Amazônia é Nossa". Por analogia, a Sibéria estaria no mesmo caso.
É uma conversa delicada que se arrasta lenta, e um dia a proteção da Amazônia pode ganhar foros internacionais como um novo normal, e surpreender. A sorte é que em condições semelhantes estão territórios que também acumulam reservas de xisto, de carvão, de petróleo, de gás, seja nos países árabes, nos EUA, na Venezuela ou na Rússia. São recursos naturais que não pertencem à país nenhum, senão à humanidade.
A Amazônia ocupa um território de quase cinco milhões de km2, abrigando 28,1 milhões de habitantes (5,6 hab. por km2). A Sibéria se estende por 13.100 km2 e é habitado por 33,7 milhões de pessoas (0,31 hab. por km2). E não tem menos recursos naturais. No caso da Amazônia, a ciência lembra sempre que se trata de um "patrimônio mundial", sorvedouro do gás carbono, responsável pelo aquecimento global. Ao mesmo tempo, é desejada pelas ávidas economias de mercado. Vêm nela uma fonte de riquezas florestais, minerais e biológicas exploráveis. Da Sibéria ninguém fala. Medo do frio, ou covardia? O futuro dirá.
As controvérsias existentes alimentam, há anos, intenções pouco explícitas do neoliberalismo, que se tornou, de fato, uma obsessão doutrinária como portador da suposta solução para o mundo. Uma "Camisa de Força", conforme ponderou o economista André Lara Resende, em livro de sua autoria lançado recentemente pela Penguim. O liberalismo é considerado por ele, na verdade, uma ortodoxia dentro do pensamento econômico convencional. Difusor do desenvolvimento competitivo, é também responsável pela fome e a miséria no mundo, ao proporcionar uma concentração da riqueza do planeta.
Contra as pretensões exclusivistas do Brasil na Amazônia, não tenho receio de juntar-me àqueles que, de uma perspectiva puramente científica, pregam abertamente que os recursos naturais, usados extrativamente, pertencem à humanidade. Se a conclusão tem sentido, seria oportuno criar uma lista de controle compulsório do uso e da conservação desses recursos no planeta.
São fundamentais para a sobrevivência humana, embora sistematicamente apropriados em invasões e guerras, reconhecidas pacificamente como ações políticas da história do homem. Sua propriedade é legitimada, entretanto, privadamente, por meio de sistemas jurídicos de convivência social, que acobertam modelos destrutivos da biomassa planetária, ao alimentar planos e projeções fantasiosas de desenvolvimento e de enriquecimento.
Em nome dessa apropriação privada hegemônica, territórios são invadidos ainda hoje, promovendo-se guerras, algumas suicidas, criando e desfazendo países, etnias, culturas e biomas. Há sempre uma doutrina, uma ideologia ou algum profeta auto empoderado tentando, submeter egoisticamente os homens e a natureza à sua utopia doentia . Caem de paraquedas no estado de indiferença dos humanos.
Sonhos e crenças são abrigados no neoliberalismo, na social-democracia, no cristianismo, no islamismo, no xintoísmo, no fascismo e até no comunismo, descompromissados com os dramas puramente humanos. Tornaram-se dogmas, apregoados como salvadores da humanidade. É aqui que começa a prisão do homem. Ele não é mais livre para ir e vir, sair em peregrinação por aí. Haverá sempre uma fronteira estrangeira a cruzar e um sistema de segurança a controlar seus passos.
Diante da predação crescente dos recursos naturais, um novo normal se insinua, quebrando barreiras e princípios nos quais se amparam o velho neoliberalismo. Por exemplo: países ricos tem hoje dívidas superiores a 100% do seu Produto Interno Bruto (PIB), limite até então condenado pelo dogmatismo que encerra para a estabilidade econômica internacional. Alguns teóricos já prenunciam mudanças qualitativas nos indicadores e até a supressão de alguns. As realidades se acomodariam em novos padrões, novos valores, novas qualificações, novas medidas, novos processos , novos controles, novos insumos, novas quantidades, novas dietas, novos salários, até mesmo alguns fraudulentos, como vem fazendo o comércio e a indústria no Brasil, à espera, talvez, de que sejam declarados novos normais.
A culpa da crise que aí está não é da covid. É do modelo. Sob o controle desses pequenos grupos de interesse, tenta-se fazer colar atividades transgressoras aos usos, costumes e práticas sociais, para transformá-las. São eles que fixam os limites para os indicadores e até para as atividades das instituições. O irônico é que nenhum deles, nem seu conjunto, deu conta de conciliar o uso dos recursos naturais à geração de alternativas para a sobrevivência das futuras gerações humanas.
Tanto mais se produz, mais aumenta o número de pessoas carentes e famintas no mundo. Não existe nenhum crescimento social de riqueza. O que existe é predatório e virtual. Cresce nas mãos de poucos, que fazem dele o uso que desejam. O sistema produtivo no mundo é direcionado para alimentar o consumo de alguns países e pessoas que hegemonicamente estabelecem os limites para a vida humana, gerando enormes desperdícios de recursos. Os excessos da produção não beneficia propriamente quem tem necessidade dela para sobrevivência: há um bilhão de famintos no planeta.
O sistema produtivo concentrado está à procura de um novo normal. Revela, contudo, a cada dia, menos compromisso com a produção de alimentos para a população, que, por sua vez, se expande, mesmo, sob controle. As políticas macroeconômicas não estão dando conta, diz Lara Resende, para quem um dos pontos paradigmáticos de tudo isso é a energia, que a maioria trata de maneira banal, contabilizando apenas os valores tarifários. Esse campo guarda enormes segredos e, também, soluções pouco conhecidas.
Na Inglaterra existe há vários anos uma organização civil empenhada em negar as leis do crescimento econômico e do desenvolvimento com base no uso intensivo dos recursos originais da natureza. O grupo é liderado pelo antropólogo inglês, Jason Hickel. Há dois anos, ele escreveu um livro intitulado "Less is More:How Degrowth Will save the world" ( Menos é mais: como o decrescimento vai salvar o mundo). Não foi traduzido para o português. Daí colocar-se por aqui ainda, na frente dos bois, o desenvolvimento (industrial, tecnológico) e não a sustentabilidade para conter os consumos conspícuos e democratizar os acessos aos recursos naturais.
O Brasil está atrasado no processo. Embora um dos grandes "biodiversos" do planeta, ainda persegue o modelo de crescimento predatório que os outros vão bandonando. Terá muito a perder, permanecendo entocado no dogmatismo neoliberal. Pode-se dizer que a Sibéria, e não a Amazônia, será o último refúgio da humanidade no planeta.
* Jornalista e professor
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