Por Ailse Therezinha Cypreste Romanelli*
Certa vez, uma aluna da graduação, pediu um parecer técnico sobre um fato ocorrido com sua filha, considerando que, na época, eu fazia parte do Conselho Estadual de Educação. A menina fizera uma prova onde deveria desenhar uma rosa dos ventos mas apesar de nomear e localizar corretamente os pontos cardeais, recebeu zero na questão. Indagada sobre o erro, a professora respondeu que as “pontas da estrela estavam arredondadas, e não agudas, como deveriam ser” (sic).
Na prova após a Recuperação, a questão foi repetida. A menina acertou a resposta, mas a estrela continuava com as pontas arredondadas. A professora considerou a questão errada e a aluna, reprovada. Teve de repetir a série.
Pergunta a mãe: “Será que minha filha está na escola apenas para aprender a desenhar estrelas?” Eu deveria responder que, antes de desenhar, mais importante seria aprender com o poeta a ouvir estrelas mas, enfim...
Uma animada discussão se instalou na turma levando à reflexão do quanto a escola, muitas vezes, faz as crianças perderem tempo com tolices... Qual seria o objetivo daquela professora? Verificar se a aluna aprendera a nomear os pontos cardeais e localizá-los de maneira correta? Saber orientar-se? Ou o que se pretendia era somente um desenho bonito? Por que desenhar uma rosa dos ventos? Qual é a relevância social desse conhecimento, aparentemente de conteúdo inútil? Talvez sua principal utilidade estivesse mesmo na capacidade de exclusão de alguns alunos... porque as crianças nem sempre são ajudadas em suas dificuldades, mas sempre são punidas pelos seus erros. Onde estaria o problema? Na escola? Ou no professor?
De toda a discussão, prevaleceu esta última alternativa e para comprovar a hipótese, a turma decidiu fazer uma pesquisa informal, investigando a percepção que os docentes tinham do assunto. Cada aluna entrevistaria dois professores, de qualquer nível de ensino, fazendo-lhes apenas uma pergunta: O que é a rosa dos ventos?
Como a Faculdade em questão recebia alunos de, aproximadamente, doze municípios do sul do Estado, teríamos dados de várias procedências e em número razoável. Pelas minhas anotações, do total de entrevistados, apenas 25% responderam corretamente a questão e destes, a maior parte afirmou consultar algum livro ou perguntar a alguém. 33,8% deram respostas aproximadas ou incompletas e 40% erraram.
Tive o cuidado de anotar os resultados e aqui transcrevo algumas respostas mais preciosas. Cinco professores disseram que rosa dos ventos era uma novela. Uma professora respondeu que “era um negócio que servia para rodar o vento” (sic); uma outra, que fez questão de assinar a resposta afirmou: “A rosa dos ventos serve de divisão para orientação na colocação dos nomes nos respectivos lugares e nas divisões dos pontos de orientação nos instrumentos náuticos, principalmente.”
Entenderam? Nem eu, nem ninguém da turma, que chegou à conclusão de que muitas vezes são apresentados determinados conteúdos, sem que se saiba por quê, ou para quê se ensina tal coisa. Mas uma estrela mal desenhada fez uma criança perder um ano de sua vida repetindo, inutilmente, uma série escolar um tempo que jamais seria recuperado.
Curiosa, pesquisei o assunto. Em um artigo sobre a Astronomia náutica árabe, do século VIII, encontrei a história daquilo que hoje chamamos de rosa dos ventos, nada mais que um feixe de trinta e duas linhas, alinhadas com constelações ou estrelas, indicando as direções dos ventos. Segundo o autor, seria bem anterior à bússola e, provavelmente, organizada pelos árabes. Na época, com navios a vela, fazia todo sentido conhecer as direções dos ventos.
E nós com isto? Por que estaria no nosso currículo? Herança portuguesa do tempo das grandes navegações? Mas hoje, o que seria relevante nesse assunto? Relação do aluno com o espaço? Preparação para leitura de mapas? Ou simplesmente o desenho de uma estrela que só aparece em cartas náuticas, no rodapé dos mapas, em alguns projetos arquitetônicos e claro, nas bússolas. (sem as pontas arredondadas) Por quê?
Em tempos mais recentes, em outra turma, agora de pós-graduação, que reunia muitas professoras, no meio de um debate sobre avaliação, contei o fato e a turma resolveu testar o conhecimento do assunto. Alguém desenhou uma rosa dos ventos no quadro de giz. Perguntei qual seria a parede Norte. Ninguém sabia. O desenho no quadro de giz não lhes dizia nada Algumas alunas ficaram de pé abrindo os braços imitando a gravura do livro que usavam com seus aluninhos.
- E como é que eu sei onde fica o Norte, professora?
- Procure o Leste, disse eu. Onde o sol nasce?
Alguém sabia e informou. Devidamente localizadas, os questionamentos continuaram, o debate prosseguiu e, surpresas, as alunas conseguiram descobrir e reelaborar vários conhecimentos anteriormente mal aprendidos.
Infelizmente, nossos currículos costumam manter certos conteúdos que, se um dia tiveram alguma importância social, hoje adquiriram outros significados porque estão completamente destituídos de qualquer interesse ou porque deixaram de fazer parte de nosso universo cultural. Nestes tempos de teoria da informação e de inteligência artificial, que serventia teria saber desenhar uma rosa dos ventos? Espero que não esteja mais nos conteúdos.
Moura Castro, criticando nossos currículos, afirmou que eles foram “construídos para as elites francesas do final do séc. XIX e não para as diversidades latino-americanas”. Muito do que é ensinado por aí, faz parte de uma cultura de classe média urbana que nada tem a ver com o alunado da zona rural ou da periferia das grandes cidades.
Lá atrás, nos anos quarenta, quando a educação brasileira se estruturou como sistema, a filosofia que norteou essa sistematização ainda era a seleção dos alunos, pois a escola secundária visava à preparação de lideranças, as tais personalidades condutoras como reza a legislação da época. Os tempos mudaram, várias reformas vieram, a Declaração dos Direitos Humanos afirmou a educação como um direito de todos, mas o ranço da seletividade permaneceu contaminando todo o processo pedagógico e muita gente boa ainda hoje afirma que “escola boa é a escola que reprova”.
Está na praça um novo currículo. Espera-se que as autoridades educacionais e os técnicos estejam antenados com a produção científica e tecnológica em suas respectivas áreas de atuação; que o conceito de educação como um direito de todos seja plenamente aceito; que a escola deixe de ser seletiva e punitiva e que os conteúdos deixem de ser meramente ornamentais, mais objetivos e práticos, adequados aos novos tempos.
Uma rosa dos ventos no Ministério da Educação, até que cairia bem.
*Ailse T.C.Romanelli é mestra em Educação e membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, cadeira nª 25