Por Frederico Bussinguer*
“As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender…”
[Paulinho da Viola]
O Ministério da Infraestrutura - Minfra divulgou, na antevéspera do prazo limite para início de vigência das restrições eleitorais, o “Balanço de Entregas do 1S/22”. Nele os leilões para as concessões dos portos de Itajaí-SC e São Sebastião-SP, e para a privatização da “Santos Port Authority – SPA” (administradora do Porto de Santos-SP) seguem previstos para o 4º trimestre deste ano (bem provável que após o 2º turno eleitoral). E não é difícil imaginar que do ministro e secretário, recém-empossados, a alta cúpula do governo e a estratégia eleitoral esperam que os cronogramas sejam cumpridos à risca.
Por isso, sendo amplamente sabido que os prazos processuais são pra lá de exíguos, as autoridades anteriormente já haviam informado que os estudos serão encaminhados ao TCU até o final de julho; sem o que, aí sim, o cronograma se tornaria inexequível. Curioso é que na véspera daquela divulgação foi noticiada reunião entre ANTAQ e a Prefeitura de Santos na qual “Santos reitera que anseios do Município sejam atendidos e questiona leilões”, deixando claro que “apesar de preferir o diálogo, Santos não descarta a judicialização nestes leilões”.
Vale lembrar, por outro lado, que diversas entidades da chamada “Coalizão” (Abratec, ABTP, ABTL, ATP, Abtra, e Fenop) haviam se manifestado na 1ª Audiência Pública (10/FEV/22) reivindicando haver nova AP antes do envio da documentação final ao TCU (sem sigilo, dessa vez!). E com base nela.
São 3 desafiantes tarefas: concluir negociações com a Prefeitura santista, finalizar e encaminhar a documentação ao TCU e, antes disso, realizar-se nova AP: será possível em menos de 4 semanas? Depois, uma vez entregue, o Minfra espera uma liberação “em 60 a 70 dias”, contando com o precedente da aprovação do edital da Codesa (“que servirá de modelo para Santos”); além da boa vontade que o Plenário do TCU tem demonstrado.
OK; impossível não é. Mas vale lembrar que: i) o modelo proposto para o Porto de Santos é substancialmente distinto daquele da Codesa; e ii) ao aprová-lo (Acórdão nº 2.931/2021), além das críticas e ressalvas (item 9.6), o TCU determinou diversas providências, tanto já para o caso da Codesa, que estava em apreciação, como para “processos futuros” (9.3.2; vários subitens do 9.4; e 9.5.2, em particular). Quase como que dizendo: “dessa vez passa, mas da próxima...”.
Se tais providências serão cobradas e/ou se será mantida a mesma linha para São Sebastião, Itajaí e Santos são outros 500. Registre-se que o relator, incidentalmente, será o futuro presidente do TCU.
Por outro lado, as trocas de comando e nas equipes do Minfra e Secretaria de Portos (PPI também) que conduziam os processos, a essa altura, não provocará neles solavancos? Garante-se que não. Mas, malgrado a competência dos substitutos, é líquido e certo? Ademais, a ida do ex-secretário para um grupo empresarial com forte presença no setor e que demonstra interesse em desestatizações futuras, e do ex-presidente da Codesa justamente para a empresa vencedora daquele leilão, pelo ineditismo não terão implicações sobre as novas desestatizações? Tampouco o terão a possibilidade de pagamento de obrigações do certame em precatórios, fato novo surgido após o leilão da Codesa e ainda pendente de decisão final?
Para além do processual:
Esses cogitáveis percalços, porém, não são os únicos no caminho do desiderato de se desestatizar os 3 portos até o final deste 2022. P.ex:
Após mais de dois anos de certo hermetismo, quando apenas reuniões bilaterais e “market sounding” eram realizadas (centenas, como seguidamente informado), finalmente foi divulgada, no início do ano, vasta documentação sobre o modelo a ser adotado em Santos: destaque para o Ato Justificatório, Edital e Minuta de Contrato. Também foram realizadas 2 longas audiências públicas, com detalhadas apresentações e várias manifestações (01; 02).
A partir de então ficou claro que: i) a desestatização em Santos diz respeito somente à administradora portuária (SPA) e, bem assim, abrangendo apenas o Porto Organizado de Santos (não todo o Complexo Portuário); ii) os investimentos compromissados não são nem R$ 30 bi, nem 18, nem 14: apenas R$ 4,4 bi. Assim mesmo se incluído o túnel: no Porto, especificamente, só R$ 1,4 bi... em 3 décadas! iii) já à União, antes mesmo de qualquer investimento, devem ser transferidos recursos do caixa da SPA (R$ 1,3 bi)... incidentalmente da ordem de grandeza dos investimentos a serem executados pelo eventual futuro gestor. Isso mesmo: o caixa atual seria capaz de praticamente bancar os investimentos comprometidos ao longo dos 35 anos do contrato. Ué? “Necessidade de captação de investimentos” (estrangeiros, de preferência) não é/era argumento a justificar a desestatização? E “objetivo não-arrecadatório” uma diretriz?
Semana passada foram anunciadas autorizações para dois novos TUPs de porte no Estuário: EBT e TPL. Pouco antes FAB e BNDES firmaram acordo que inclui a cessão de uma área de 600.000 m2 que pode vir a ser mais um novo TUP. As duas primeiras foram saudadas como perspectiva de investimentos de R$ 6,6 bi na Região. Mas, analisadas contextualizadamente, inevitável ponderar-se: i) se o objetivo (da SPA e do Minfra) com a novíssima Poligonal (2022) era incluir no Porto Organizado todas as áreas “portuáveis”, de forma a aumentar o valor do “ativo” para a desestatização, por que foram deixadas de fora justamente essas, na privilegiada região de Barnabé-Bagres? ii) mas, se ao contrário, o objetivo era estimular TUPs, como tem sido a política governamental nos últimos anos, por que incluiu na Poligonal áreas no “Fundão do Estuário” potencialmente utilizáveis para expansão dos TUPs ali implantados há mais de meio século?
Não aparenta ser uma contradição? Que critérios foram usados para as exclusões e inclusões? Difícil sabê-lo, mesmo porque não foi realizada Audiência Pública para tanto; diferentemente do procedimento adotado pelo próprio Minfra, em anos recentes, para Suape-PE, Porto Alegre-RS, São Sebastião-SP, Fortaleza-CE e 16 outros portos. Ah! E não se trata de uma mera correção ou ajuste: a novíssima Poligonal praticamente duplica a área do Porto Organizado de Santos!
Quando da Poligonal/2020 até é possível alguma conexão com a AP que foi realizada 2 anos antes (12/ABR/18). Mas no recente caso, um ano e meio depois da última modificação, já com os estudos da desestatização em andamento, nem isso: seja pela distância dos eventos, seja pela abrangência das modificações.
Há um outro aspecto: novos terminais não demandam alteração do PDZ e/ou no Plano Mestre (incluindo a logística terrestre; particularmente ferrovias que se quer aumentar a participação na matriz de transportes)? Não são tais planos condicionantes da modelagem? E, não estando previstos no EVTEA, não alteram a equação econômico-financeira? E, assim, a própria atratividade e cenário do leilão com base no modelo apresentado nas APs?
Por estarem intimamente ligadas ao “ativo” a ser desestatizado, à articulação intermodal na Baixada Santista e às condições concorrenciais no Porto e no Complexo Portuário, não seria desejável que tais questões estivessem esclarecidas e as opções finais compatibilizadas quando do encaminhamento da documentação ao TCU? Ou melhor ainda; quando da eventual AP prévia?
D´além mar:
No processo de arrendamento do STS-10 em curso, também em Santos, verticalização (portuária e/ou logística) tem sido objeto de acalorada discussão (01; 02). Um de seus ingredientes é a necessidade, limites e combinações de regulação ex-ante (envolvendo estrutura de mercado) e/ou ex-post (sobre ações e práticas efetivamente verificadas no dia a dia). Como se viu no recente debate promovido pelo TCU, predomina entre os agentes públicos a opção pela regulação ex-post, por se entender haver atualmente instrumentos eficazes; além de se considerar que Antaq e a regulação setorial estão “maduras”: não é avaliação pacificada. Há vozes discordantes.
Jogando lenha nessa fogueira um recentíssimo fato, aparentemente desconexo, ocorrido a quase 7.000 km de distância, pode levar tais convicções a serem repensadas: o “The Ocean Shipping Reform Act”, sancionado pelo Presidente Joe Biden em meados de junho, na busca de minimizar os efeitos de abusos de alguns armadores (o que foi pela entidade que os representa tenazmente contestado, e repercutido).
Complexa, tal lei introduz novos regramentos, define diretrizes para atuação da Federal Maritime Commission – FMC (“prima” da Antaq), e altera o modelo regulatório: com isso, deve anabolizar a corrente ex-ante. E não apenas nos USA ou no setor de navegação e portos, mas de uma forma abrangente e mundial, visto que estabelece novo paradigma de atuação do governo de um país líder, com sociedades e economias reconhecidas como entre as mais pró-mercado do Planeta.
Nessa mesma linha, chama também atenção: i) carta enviada pelo Congresso americano à Maersk, CMA-CGM e Hapag-Lloyd externando “profunda preocupação” por “práticas predatórias que podem ter se envolvido durante a pandemia... afetando consumidores e pequenas empresas” – iniciativa pouco usual; e ii) do outro lado do Atlântico, o Presidente Macron foi mais objetivo: ante a divulgação de lucros bilionários (e crescentes) dos armadores (01, 02), convidou a (francesa) CMA-CGM para uma conversa semana passada. Não estão claros os argumentos utilizados; mas o certo é que o armador já anunciou uma redução de US$ 500,00 em vários fretes a partir de 1º/AGO próximo.
Como USA e França são históricos paradigmas para o Brasil, será que essas iniciativas não reverberarão por aqui? Sobre o STS-10, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE até já publicou Nota Técnica, semana passada, “vendo eventuais problemas de concentração de mercado no planejado leilão”: incidentalmente analisara a participação de alguns daqueles armadores.
Uma coisa é o arrendamento (STS-10); outro é a desestatização da SPA. Mas como os processos correm em paralelo, como a questão da verticalização (no limite, monopolização) está presente em ambos, e há vasos comunicantes porto-navegação, definições de um não influenciarão a tramitação do outro? Além dos ruídos econômico-financeiros, arguidos por muitos, consta haver também avaliações de que teria sido “um tiro no pé” (ou nos dois!?) a estratégia do Minfra e PPI fazerem tramitar os 2 processos simultaneamente: a se avaliar!
Será que justamente para evitar sobressaltos desse tipo o Porto de Rotterdam-Holanda, recentemente visitado por missão brasileira, faz questão de manter sua autoridade-administradora com controle 100% público (70% municipal + 30% nacional)?
Voltando à terra brasilis:
Ironicamente, porém, talvez a principal má notícia para a desestatização portuária venha de outra do próprio governo; em princípio boa: entre 2020-21 o resultado líquido agregado das 46 empresas estatais (federais; incluindo administrações portuárias) “triplicaram o lucro e tiveram desempenho recorde” (de R$ 60,6 bilhões para R$ 187,7 bilhões). A título de comparação, 3 a 4 vezes os recursos previstos para a “PEC dos Benefícios”; conhecida como “PEC Kamikaze”.
Ante esse desempenho, sistêmico, torna-se insustentável usar como justificativa para as desestatizações que “é impossível administração eficiente com essa lei de licitações”, ou “... com essa burocracia”: não parece que a dialética terá que ser depurada e a narrativa redefinida se o processo de desestatização é para seguir adiante?
Enfim; como se viu: i) o modelo apresentado não exige investimentos exógenos significativos (praticamente o previsto e compromissado será bancado pelo fluxo de caixa do Porto); e ii) o próprio governo demonstra que é possível alcançar resultados sob o arranjo institucional-regulatório vigente.
Por que, então, correr-se todos esses riscos e conformar-se com efeitos colaterais negativos, ainda não totalmente claros, por décadas à frente, com desestatizações das administrações portuárias; uma jabuticaba?
Por que então, não se redirecionar tempo, recursos e esforços? Por que não se redefinir a agenda e priorizar ações que não dependem obrigatoriamente de leilão, mas muito mais de articulações.
Itajaí e São Sebastião têm suas pautas específicas. No caso de Santos, no qual os principais gargalos estão nos acessos (aquaviário e terrestre; principalmente ferroviário) pode-se listar como exemplo: i) compatibilização das capacidades das malhas da Baixada e Serra com as expansões do Planalto; ii) compatibilização das capacidades portuárias e ferroviárias (que devem se desequilibrar ainda mais com os novos TUPs autorizados); iii) eliminação do monopólio no acesso ferroviário ao Porto e ao Complexo Portuário? iv) unificação da gestão e operação de todas as malhas da Baixada (FIPS, MRS, Rumo e VLI) visando a uma gestão mais eficiente? v) estruturação de uma governança abrangente e mais contemporânea para o Complexo (não apenas para o Porto Organizado).
Esses, problemas reais, demandam soluções urgentes e sustentáveis (na sua mais ampla acepção). Com ou sem desestatização.
*Engenheiro Eletricista e Economista, Pós-graduado em Engenharia, Administração de Empresas, Direito da Concorrência e Mediação e Arbitragem.
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