Por Erlon José Paschoal*
O russo Liev Tolstói é, sem dúvida, um dos grandes símbolos da literatura mundial e da sabedoria. Foi, portanto, um sábio, um escritor incansável, quase um profeta de uma nova religião e um pacifista, que com suas concepções de não-violência – como forma de oposição aos opressores – influenciou as ações de Mahatma Gandhi, na Índia, por exemplo, com quem manteve uma intensa correspondência.
Ele se tornou conhecido no planeta, sobretudo, por suas obras grandiosas, a monumental “Guerra e Paz” que aborda em quase 2500 páginas, a invasão napoleônica na Rússia, no início do século XIX, misturando personagens reais e imaginários, e o romance “Ana Karênina” que desnuda o simulacro da instituição do casamento da aristocracia russa da época, e destaca o poder da paixão e a prática rebelde do adultério, cometido pela protagonista.
Tolstói nasceu em 1828, filho de aristocratas de quem recebeu uma polpuda herança, casou, teve 13 filhos, foi soldado na guerra da Criméia (1853-56); se indignou com a desigualdade social acintosa e a vida miserável dos camponeses em seu país ainda em um sistema feudal; se dedicou a ensinar os mais pobres a ler e a escrever; elaborou cartilhas e métodos de ensino modernos para a época; foi excomungado pela Igreja em função de suas críticas e por suas pregações de uma cristianismo amoroso, humanizado e solidário; publicou inúmeras obras e gozou em vida de uma fama internacional e, por fim, aos 82 anos, em 1910, abandonou sua casa e sua família para iniciar uma nova vida, sem luxo e na mais absoluta simplicidade. Faleceu no caminho, em uma estação de trem, depois de contrair pneumonia. Sua imagem mais célebre é aquela onde aparece vestido de camponês e com uma longa barba branca, como um dos grandes mestres da humanidade.
Um de seus livros, considerado por muitos uma obra-prima, é a novela pouca extensa, mas profunda, com o título de “A Morte de Ivan Ilitch”, com duas ótimas edições no Brasil lançadas pela Editora 34 e pela Editora Antofágica, respectivamente.
Trata-se da história do funcionário público, juiz do Foro Criminal, Ivan Ilitch que morre aos 45 anos, depois de uma vida decente, vazia, insossa, desprovida de sentido e fútil. Seguiu a profissão ditada pelos pais, casou por conveniência, tratou os subalternos com arrogância, desdém e indiferença, não criou vínculos afetivos significativos, nem com a esposa, nem com os filhos, nem com os amigos e, de repente, foi acometido por uma doença incurável.
Durante o seu enterro, os amigos pensam apenas no cargo agora vago na repartição e nas disputas internas pelas possíveis promoções. E, como de costume, passa pela cabeça de todos aquele velho pensamento “antes ele do que eu”, enquanto se veem obrigados a cumprir aqueles rituais desagradáveis de ir ao velório, dar os pêsames à família e acompanhar o enterro. Alguns dias antes “(...)todo o interesse que ele apresentava para os demais consistia unicamente no seguinte: se não demoraria muito a desocupar finalmente o seu lugar, a livrar os vivos da opressão causada pela sua presença, e a livrar-se ele mesmo dos seus sofrimentos.”
O autor descreve com ironia e precisão as posturas cínicas e mesquinhas, a hipocrisia e a vida de mentiras assumida por aquelas pessoas de bem, dos melhores estratos sociais, naquele mundo de aparências. A novela começa com a morte do protagonista e, em seguida, o autor descreve em rápidas e objetivas pinceladas a vida do defunto até culminar naquele momento em que ele se torna um fardo, um estorvo para todos.
Nos meses finais de sua vida, atormentado por dores lancinantes, o personagem agoniza causando um mal-estar na família, nos médicos e nos amigos, pois ao invés de melhorar, ele piora a cada dia, a olhos vistos. “O sofrimento maior de Ivan Ilitch provinha da mentira, aquela mentira por algum motivo aceita por todos, no sentido de que ele estava apenas doente e não moribundo, e que só devia ficar tranquilo e tratar-se, para que sucedesse algo muito bom.”
Ivan Ilitch se confronta, então, com a morte e com o vazio de sua existência, com a curta duração da vida e com a sensação de que deixara de viver o essencial, afinal o seu trabalho, o arranjo de seu cotidiano, a sua família e as cobranças da sociedade, tudo isso poderia ter sido diferente. “O matrimônio tão involuntário, e a decepção, o mau hálito da mulher, a sensualidade, o fingimento! E aquele trabalho morto, e as preocupações de pecúnia, e assim um ano, dois, dez, vinte – sempre o mesmo. E quanto mais avançava a existência, mais morto era tudo.”
Ele sente que destruiu tudo o que lhe foi dado e agora não havia mais tempo para corrigir. Até o instante derradeiro, em que Ivan Ilitch se sente atirado em um buraco escuro e de repente vê uma luz: as dores então desaparecem, somem o cansaço e o medo da morte e ele sente alegria diante da luz intensa e diz a si mesmo “a morte acabou, não existe mais.”
Ao terminar a leitura me vieram a memória alguns versos de Mia Couto:
“(…) O que mais cansa não é trabalhar muito.
O que mais cansa é viver pouco.
O que realmente cansa
é viver sem sonhos”.
Uma novela magistral sobre a vida, a morte e o sentido da existência.
* Gestor Cultural, Diretor de Teatro, Dramaturgo, Professor e Tradutor de Alemão.