Ailse Therezinha Cypreste Romanelli*
Na véspera do Ano Novo, como não teríamos a tradicional queima de fogos, em função da covid, meu neto de quatro anos pediu que o pai comprasse uns fogos de orifício para ele soltar na praia. Rimos juntos, ele aprendeu a palavra certa e a história entrou para o folclore da família. Tive um problema semelhante com um aluno, só que o personagem não tinha quatro anos.
Era um curso de graduação e a turma encerrava um debate quando alguém pediu um esclarecimento. Não era um aluno qualquer, mas um senhor, entre quarenta e cinqüenta anos, que concluía a licenciatura em Ciências Sociais. Era graduado em Ciências Contábeis, profissional na área e professor de um curso técnico de Contabilidade.
“- Ailse, desculpe-me, não tem muito a ver com a aula, mas é uma questão que me incomoda desde que eu era criança. Estamos todos aqui apresentando nossas dúvidas com tanta espontaneidade que resolvi me atrever a perguntar.” E virando-se para a turma, avisou:
“- Oi Turma, quem quiser rir pode rir; não vou me aborrecer. Mas eu preciso perguntar:
- O que eram os tais galinhões espanhóis? Transportavam prata. Como? Nunca consegui entender esse negócio.”
Todo mundo riu e confesso que também tive vontade de rir. Escrevi a palavra galeão no quadro de giz e passei a explicar que não se tratava de uma galinha grande, mas de um tipo de embarcação antiga, diferente da caravela, muito usada na época dos descobrimentos. O galeão era uma galé grande, um barco mais aperfeiçoado porque além de velas tinha remadores. Na falta de vento, não ficaria à deriva. Porém, o mais interessante, é que na turma, muita gente também não sabia o que eram, exatamente, os galeões.
Após a explicação o aluno abriu um sorriso e disse: “Ah professora! Agora começo a entender um monte de coisas que não faziam sentido pra mim. Obrigado!
E explicou: viera de uma escola rural, para fazer o ginásio na cidade e teve dificuldade em compreender o linguajar da professora. Para uma criança que entendeu galinhões em vez de galeões, toda a informação que viera depois ficou perdida. Poderia ter perguntado mas teve vergonha de expor sua ignorância, mesmo porque como ninguém perguntou nada ele julgou que todos já soubessem do que se tratava. Além disso, já havia observado que a professora se irritava com as perguntas dos alunos; iniciava as explicações avisando: “- Prestem atenção porque não vou repetir.”
Mas a história se repete. Boa parte de nossos professores não gosta de responder perguntas, especialmente na escola pública. Os pais se queixam: ”meu filho tem dificuldade de entender certas aulas mas o professor não repete as explicações. Ou: “meu filho disse que não vai mais perguntar nada porque o professor responde muito mal.” Tais queixas, as que nos chegavam através dos pais e outras evidenciadas em pesquisas, são mais comuns do que se pensa e continuam presentes.
Pasmem! Há menos de um mês, ouvi o relato de uma avó cujo neto, autista, aos sete anos, frequenta uma escola pública na área Grande Vitória. Já sabe ler e é bom em Matemática. Mas é lento ao copiar o que está no quadro de giz e é lento para completar os deveres. Em função de sua condição, não suporta sons muito altos, nem gritos e se descontrola quando a professora fala mais alto ou bate na mesa. Fica estático, não consegue dar continuidade ao que estava fazendo, nem sempre compreende as explicações e faz perguntas.
Mas a professora não gosta de alunos inquiridores, mesmo neste caso, sabendo das dificuldades dessa criança; além de não responder, chama o menino de burro e ameaça de deixá-lo preso na escola como castigo. A mãe foi à Direção pedir ajuda. A professora não mudou seu comportamento; simplesmente reforçou as ameaças à criança acrescentando – “Não tenho medo de sua mãe”.
Pergunto: o que leva uma professora a proceder dessa maneira numa turma de crianças de sete anos? Entre elas uma especial, diagnosticada com autismo. A professora sabe disso. Então, por que a prepotência? Preconceito? Insegurança? ou arrogância mesmo? ...É Manacorda quem nos relata a existência de um certo sadismo pedagógico e o pedantismo didático, “pragas que encontramos ao longo de toda a História da Educação”.
Não admitir alunos perguntadores pode ser preconceito, mas em geral indica insegurança. A falta de domínio do assunto torna o professor inseguro; ele não se sente confortável diante da turma, com medo de não saber responder e ser ridicularizado. E se ele é preconceituoso ou tem medo dos alunos, encara as perguntas como insolência e se julga no direito de não responder ou recriminar e rejeitar o perguntador. Só que nosso professor não sabe que a linguagem que ele usa, muitas vezes não é compreendida pelas crianças. Ele desconhece a existência e o que dizem as pesquisas sobre o assunto.
Na Inglaterra, Basil Bernstein estudou profundamente o que chamou de discurso pedagógico – DP - e identificou dois tipos de linguagem que denominou “código restrito” e “código elaborado”. A linguagem do professor, da escola e dos livros é um código elaborado, familiar ao aluno de classe média e classe media alta, pois durante toda sua vida eles estiveram imersas nele.
Entretanto, o código restrito compõe a vivência familiar das crianças e jovens das classes populares, daí não entenderem a linguagem elaborada dos livros ou do professor. Uma linguagem que lhes parece “algo estranho e alheio, simplesmente indecifrável e os alunos não conseguem saber do que se trata. Parece uma fala ou texto em língua estrangeira, às vezes incompreensível”. Se o aluno não consegue entender o que leu ou o que ouviu, e não se sente encorajado a perguntar para esclarecer suas dúvidas, acaba memorizando uma série de informações desconectadas porque falta um elo que as integre.
No caso de meu aluno, adulto e também professor, vejam bem, no momento que em esse elo foi estabelecido – com o esclarecimento do significado da palavra galeão e não, galinhão, as informações formaram um conjunto coerente e foi recuperada uma parte importante do quadro de conhecimentos que esse senhor tinha da História.
Então de que vale encher a escola com toda uma parafernália eletrônica, se o professor não atua como deveria? Melhor seria, proporcionar cursos de formação de modo a preparar o professor para o que se chamava, antigamente, de “manejo de classe” e hoje faz parte da Sociologia da Sala de Aula que muita gente boa desconhece: como organizar o trabalho coletivo, como encarar e tratar a indisciplina; como lidar com crianças especiais, o contexto de aprendizagem etc. o cotidiano da escola.
Quando se fala na má qualidade da educação brasileira, logo é citado como causa do fracasso o pequeno investimento que se faz na área. No entanto, quando comparado com os países bem situados no ranking dos exames internacionais, vemos que nosso investimento é maior do que a média investida por esses países. O problema, portanto, não é o dinheiro. O problema está no chão da sala de aula.
Sem ter a quem recorrer para entender o que ficou para trás, meu aluno levou uma vida para criar coragem e expor sua dúvida. Interessante observar que qualquer pessoa que adquire um cachorro, ao buscar um treinador, vai procurar aquele que tem a melhor metodologia para ensinar a seu bichinho. Mas nos cursos de formação de docentes, as Metodologias foram banidas. Numa avaliação bastante pessimista, acho que é porque cachorrinho custa caro. Criança é de graça e nem sempre tem pedigree.
*A autora é Mestra em Educação e
faz parte da Academia Feminina Espírito-santense de Letras.