Fabrício Augusto de Oliveira*
Ignorada de uma maneira geral por todos os governos após o processo de redemocratização do país, sejam da direita, do centro, da esquerda, a questão da reforma tributária voltou a ocupar posição central nas propostas dos candidatos à eleição presidencial neste ano. Embora sem deixarem claro sobre o que e como pretendem fazê-la, tanto os candidatos Luiz Inácio Lula da Silva como o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, que se encontram liderando essa corrida, têm incluído, pelo menos ao nível do discurso, a promessa de que mudanças no sistema de impostos deverão ser orientadas para aumentar sua cobrança sobre os mais ricos e reduzi-la para os mais pobres, tornando o sistema mais justo e com maior progressividade. Este é, de fato, um dos princípios mais caros da teoria das finanças públicas que, no Brasil, nunca foi levado em conta.
Com uma composição em que os impostos indiretos respondem por mais de 70% da arrecadação do governo, a estrutura de impostos no Brasil é uma das mais perversas no mundo. Opera, por essa razão, como potente força anticrescimento econômico e antiequidade. Anticrescimento porque, além de lançar o maior fardo tributário sobre as camadas mais pobres da população e enfraquecer a demanda por bens e serviços da economia, provoca distorções na estrutura de preços relativos e reduz a competitividade da produção nacional, dado o maior peso dos impostos indiretos, bem como o fato de serem, em parte, cumulativos, ou seja, de impostos que incidem sobre suas próprias bases. Antiequidade porque, ao onerar as camadas mais pobres com maior comprometimento de sua renda para o pagamento de impostos vis-à-vis os mais ricos, contribui para o aumento das desigualdades sociais e da pobreza no país.
Nas duas grandes reformas tributárias realizadas no Brasil, a de 1966 e a de 1988, essa questão, a da distribuição mais equitativa entre os membros da sociedade, foi preterida. Na primeira, pela ênfase atribuída ao processo de acumulação e, consequentemente, ao maior apoio dado ao capital e às camadas mais ricas; na segunda, pela prioridade dada ao fortalecimento financeiro dos estados e municípios, visando recuperá-los como entes federativos que haviam perdido toda a autonomia, à medida que completamente subjugados pelo Poder Central durante a ditadura militar de 1964-1985. A preocupação com a questão da equidade dos constituintes de 1988 foi, assim, enfraquecida porque contemplada apenas ao nível de princípios que não se materializaram
As mudanças introduzidas no sistema a partir da década de 1990, quando o mesmo foi transformado em um instrumento de ajuste fiscal, praticamente descartaram qualquer compromisso com o seu manejo para o atingimento de objetivos sejam econômicos ou sociais. O fato é que nenhum governo pós-redemocratização, incluindo os de esquerda, jamais deram importância para o sistema como instrumento por meio do qual seria possível não somente reduzir as desigualdades de renda existentes como também injetar fôlego ao crescimento econômico, desde que realizadas reformas voltadas para estes objetivos. Sua realização, no entanto, implicaria contrariar os interesses das classes dominantes, o que nenhum desses governos se dispôs a fazer.
É preciso, no entanto, olhar as promessas atuais dos candidatos com reservas. Isso porque a situação fiscal deve piorar bastante num futuro próximo, exigindo ajustamentos mais drásticos neste campo. Embora até o mês de maio deste ano a dívida líquida do setor público (DLSP) estivesse contida em 58,8% do PIB e a dívida bruta dos governos em geral (DBGG) em 78,2%, a expectativa é de que as mesmas continuem em trajetória de crescimento. Em primeiro lugar porque, diante da perspectiva de uma recessão que se anuncia para a economia global será inevitável a queda das receitas públicas, cujo desempenho, no Brasil, tem sido o principal fator que está barrando uma maior deterioração das contas públicas. Em segundo, porque, ao desmontar os mecanismos de controle dos gastos públicos para viabilizar sua reeleição, caso do teto dos gastos primários do governo, e reduzir impostos, inclusive dos estados, para domar a inflação, o governo Bolsonaro armou uma verdadeira bomba fiscal que vai cair no colo de quem for eleito e a quem caberá desmontá-la. Em terceiro, porque a taxa de juros Selic deverá permanecer elevada ainda por um bom tempo, garantindo pesados encargos para a dívida pública.
Não sem razão, Guilherme Mello que participa do grupo que elabora o programa do governo Lula aponta a reforma tributária como prioridade, mas coloca dúvidas de sua precedência sobre a mudança do arcabouço fiscal das contas públicas, ou seja, do desenho do novo regime fiscal que o governo terá de fazer para recuperar a confiança dos investidores sobre sua capacidade de solvência. Se ficar para depois, é melhor já ir se despedindo de sua realização. Já do lado do governo Bolsonaro que, como ele próprio diz, nada entende de economia, a responsabilidade por essas mudanças caberia ao ministro da Economia, Paulo Guedes, notório membro do neoliberalismo, que tem jogado todas as suas fichas na taxação dos lucros e dividendos, à alíquota de 15%, mas para compensar a correção da tabela do imposto de renda da pessoa física, promessa de campanha anterior do candidato, e ampliar a receita para tornar o Auxílio-Brasil de R$ 600 permanente para seus beneficiários, como também passou, oportunisticamente, a defender neste ano eleitoral. Nada, no entanto, diz sobre a redução mais permanente dos impostos indiretos que oneram a classe mais pobre do país. É muito pouco para um sistema que demanda reformas mais profundas para a correção de suas não poucas mazelas.
Entre os dois principais candidatos ao cargo presidencial a reforma tributária parece, assim, ocupar papel de destaque em seus programas de governo. São, no entanto, tantas as ressalvas, as condições e, no caso de Paulo Guedes, a limitação de seus objetivos para sua realização que, mais uma vez, não se pode garantir que algum fruto mais importante possa ser colhido nessa frente que capaz de remover os óbices que a mesma representa para o crescimento econômico e para a redução das desigualdades sociais no Brasil.
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, do Grupo de Estudos de Conjuntura Econômica do Departamento de Economia da UFES, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”.
Foto: reprodução da internet.
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