* Por Erlon José Paschoal
Thomas Mann nasceu em 1875 em Lübeck, na Alemanha, e morreu em 1955 na Suíça, para onde se mudou depois de mais de dez anos exilado nos EUA. Como muitos escritores importantes da época teve seus livros queimados pelos nazistas em 1933, em uma patética demonstração da insanidade e da ferocidade dos adeptos de Hitler e de seus comparsas.
Considerado por muitos um dos maiores romancistas da literatura mundial publicou “Os Buddenbrook”, “A Montanha Mágica”, “José e seus Irmãos” e “Morte em Veneza”, entre outros, e em 1929 foi agraciado com o Prêmio Nobel.
Em seu romance “Doktor Faustus – Das Leben des deutschen Tonsetzers Adrian Leverkühn, erzählt von einem Freund”, “Doutor Fausto - A Vida do Compositor Alemão Adrian Leverkühn, narrada por um amigo”, publicado no Brasil pela Editora Companhia das Letras, em uma ótima tradução de Herbert Caro, Thomas Mann retoma o tema do mito medieval do Doutor Fausto, imortalizado pela grandiosa obra teatral de J.W. Goethe, um personagem supostamente real - também retratado em um texto do escritor inglês Christopher Marlowe no século XVI – que vendeu a sua alma ao demônio em troca de mais 24 anos de vida, do saber absoluto e do amor.
Thomas Mann, por sua vez, relata a história da vida do compositor Adrian Leverkühn, que também faz um pacto com o demônio, conduzida por seu amigo e agora biógrafo Serenus Zeitblom.
O curioso é que Klaus Mann, seu filho, onze anos antes, havia publicado o romance “Mefisto” – que, aliás, tive o prazer de traduzir para a Editora Estação Liberdade – fazendo uso do mesmo tema e da mesma metáfora, motivo também de conflitos insolúveis entre pai e filho. Na versão de Klaus, um ator se entrega de corpo e alma à danação nazista em troca de fama, dinheiro e poder.
O Fausto de Thomas Mann pode ser entendido, por outro lado, como uma alegoria da Alemanha, de uma cultura milenar tão vasta e valiosa, que se entrega cegamente à sanha destrutiva e ao ímpeto animalesco dos senhores nazistas, os novos demônios, os malignos que levaram o povo alemão, a Europa e a humanidade ao caos e à aniquilação, numa reverência fanática às divindades das profundezas do inferno e do martírio.
Adrian, uma espécie de símbolo do gênio alemão, personificado através da música, almeja compor algo inteiramente novo e assombroso que supere tudo o que existe, revogando até mesmo a 9ª Sinfonia de Beethoven, a Ode à Alegria, invertendo-a e alcançando assim o mais extremo acento de pesar, o auge da desolação que soará como o lamento de Deus, “a identidade substancial entre a suma felicidade e o máximo horror, a unidade íntima entre o coro dos anjinhos e a gargalhada infernal”. E Adrian consegue, por fim, terminar esta obra majestosa com o título de “Lamentação do Doutor Fausto”, com o auxílio do diabo que tudo lhe “assoprou” e com o qual fez um pacto que lhe garantisse esta criação, embora houvesse nele uma cláusula cruel, a de que ele jamais poderia amar alguém. E, de fato, algumas pessoas por quem ele sente amor morrem de repente, como se atingidas por alguma praga demoníaca.
Serenus descreve Adrian como um ser frio, introspectivo, indiferente, soberbo, arrogante, ambicioso e sempre acima de todos e….genial. E nutre por ele um amor incondicional, profundo que suplanta até mesmo o que sente pela própria esposa e pelos filhos. E de maneira quase obsessiva dedica-se a zelar pela vida extraordinária e misteriosa de Adrian, sempre isolado, melancólico, doente e envolvido unicamente com a música.
Em discursos longos, minuciosos e prolixos, o narrador discorre sobre harmonias, fugas, tonalidades, colcheias, claves, dissonâncias, contrapontos, acordes, polifonias e dodecafonismos, a ponto de ao final o leitor seguramente se perguntar como soariam as composições geniais de Adrian Leverkühn.
A maior parte do tempo os personagens passam em saraus e encontros sociais debatendo e discutindo interminavelmente sobre os mais variados temas, com a predominância da música, sem dúvida, na qual forma e conteúdo se mesclam e se confundem, como diz o compositor. Predomina ali uma convivência vazia, preconceituosa e pernóstica típica da sociedade burguesa da época, com seu conservadorismo, sua superioridade intelectual e sua propensão a formas autoritárias de poder.
Um dos recursos do autor é narrar os fatos em uma cronologia dupla: a vida dos personagens e a História da Alemanha da primeira metade do século XX, culminando com a morte de Adrian em 1941, o final da segunda guerra em 1945 e as revelações dos horrores e atrocidades cometidas pelos alemães, que estiveram a ponto de conquistar o mundo, graças a um “pacto assinado com o próprio sangue”. O livro de Thomas Mann foi publicado em 1947 e em 1949 Klaus Mann, seu filho, se suicidou, numa trágica coincidência.
O grande romancista burguês, conservador e humanista se mostra ao final perplexo, ao constatar que seu país, tão elevado em suas criações culturais, tenha se deixado levar de maneira tão vil, tão abjeta, pelas forças demoníacas. Uma obra vasta, grandiosa, profunda, universal e atual nesses nossos tempos novamente ameaçados por comportamentos fascistas, cínicos, destrutivos e por demônios diversos. Desolado, o autor assim encerra o romance: “Que Deus tenha misericórdia de vossa pobre alma, meu amigo, minha pátria!”.
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, Escritor e Tradutor de alemão.