Frederico Bussinger*
Formalmente a agenda portuária brasileira segue o roteiro privatizante. Ela vem se desenvolvendo sobre uma trilogia, com distintas ênfases ao longo do tempo: inicialmente foram as renovações antecipadas de contratos de arrendamento (firmados em meados dos anos 90; no modelo sob a lei de 1993), e o “boom” das autorizações de TUPs (sob o modelo da lei de 2013). Um pouco mais adiante vieram os leilões para novos arrendamentos (“brownfield” e “greenfield”). Neste ano o principal foco são as desestatizações/privatizações das administrações portuárias (portos capixabas, Itajaí, São Sebastião e Santos).
No último balanço divulgado pelo Minfra, antes das vedações do período eleitoral, são reportadas como “entregas” entre 2019-22: i) assinatura de 36 contratos de arrendamento (renovados ou leiloados); ii) autorização de 99 TUPs; iii) desestatização de uma Administração Portuária (Codesa). Ainda seguem previstos, até o final deste ano, novos leilões para 16 arrendamentos e 4 desestatizações/privatizações (concessões).
Tal qual a Lua, porém, essa agenda portuária tem outra face. Não exatamente escura (como usualmente se imagina sobre nosso satélite); mas não visível a olho nu... ao menos para a maioria. A se destacar:
Há um processo/fenômeno que não é privativo nem dos portos nem do País. Tampouco objetivo explícito da agenda governamental: a verticalização. Só que veio à tona quando da modelagem para arrendamento de um terminal no Porto de Santos (STS-10); e revelou, em fotografia de corpo inteiro, nas respectivas audiência pública e debate (específico) promovido pelo TCU (maio passado), os (conflitantes) interesses envolvidos e seus argumentos justificadores.
O processo/fenômeno, em si, tem sido objeto de estudos e ações de agências multilaterais, governos nacionais e autoridades regulatórias; sempre na busca de se conciliar liberdade de atuação dos agentes econômicos com proteção de mercados, usuários, clientes e consumidores (intensificado durante a pandemia). Atenção ainda maior quando a verticalização está associada a concentração horizontal!
Enfim, o tema entrou na agenda portuária brasileira pela porta lateral; mas certamente veio para ficar. E deverá dar muito pano pra manga!
Por outro lado, privatização é tema que envolve diversos setores da economia; e, nesse ciclo da história nacional, vem ocupando a agenda dos governos há pelo menos três décadas. Já desestatização portuária, tema que entrou na pauta há não muito tempo, em princípio é disciplina do curso de governança; certo? O curioso é que 70%, 80%, ou mais, do que se ouve e/ou se discute sobre ela tem foco na perspectiva de investimentos; algo da disciplina de planejamento!
É o caso da travessia seca Santos-Guarujá no modelo proposto para a desestatização da SPA. Como decorrência, e potencializado pelo fascínio que perspectivas de investimentos causam, a governança do Porto Organizado ficou em segundo plano. E praticamente não é analisada/discutida.
Face oculta da Lua:
Mas há outros temas, também relevantes, mas menos frequentes nas exposições, entrevistas, mensagens nas redes sociais, e reportagens sobre a desestatização portuária. Dois em particular:
O primeiro é a centralização do processo decisório. E isso não vem de agora: como dizia Golbery, tem sido processo “lento, seguro e gradual”; sempre subjacente àquilo que as narrativas (e promoções) oficiais priorizam. P.ex: “resolver o imbróglio carga própria X de terceiros” foi o que se propunha com o Decreto nº 6.620/08 (imbróglio que ele não resolveu!); enquanto o objetivo da MP-595/12 (embrião da Lei nº 12.815/13 – Lei dos Portos) era embasar ambicioso “Programa de Investimentos em Logística - Portos” (cujos resultados, modestos, ficaram bem aquém do previsto/prometido). Lembra-se?
Ambos embutiam, porém, uma governança estrategicamente centralizadora que, ao contrário do imbróglio e dos investimentos, essa sim, avançou celeremente. A essa altura, caminhamos para um arranjo que é como se tivéssemos uma “Autoridade Portuária Nacional”? Explica-se:
Quem aprova Plano Mestre e PDZ de cada porto? O Minfra (art. 25-A, § 2º do Decreto nº 8.033/13). Quem qualifica projetos para desestatização? CPPI (art. 7º da Lei do PPI). Aprova EVTEAs? Minfra (art. 2º, VI do Decreto). Elabora editais? Antaq (art. 6º, § 3º da Lei dos Portos). Celebra contratos (outorgas) e decide prorrogações (incluindo as antecipadas)? Minfra (art. 16-II; e art. 57 da Lei dos Portos). Aprova transferência de controle acionário? Minfra (art. 2º, IV do Decreto). Revisa e reajusta tarifas? Antaq (Art.71; art. 27 VII da Lei nº 10.233/01 - Lei da Antaq). Fiscaliza as administrações portuárias? Antaq (Art.71; art. 51-A da Lei da Antaq). Aplica penalidades por infrações? Antaq (art. 17, § 1º, XI, e 50 da Lei da Antaq).
Em síntese: i) planejar (incluindo investimentos e modelagem), escolher parceiros (empresas e projetos), tarifar e punir, justamente os 4 eixos que são a essência da função de autoridade portuária no modelo “Land Lord”, mantida a tendência em curso, seguirão concentradas em Brasília: no Minfra, PPI e Antaq; e, claro, a possibilidade de TCU e MPF a qualquer momento. ii) Às administrações portuárias (“zeladores”, para muitos!) seguirão cabendo as tarefas do art. 17 da Lei dos Portos (autorizações referentes a movimentações de embarcações e cargas; estabelecimento de horários de funcionamento; arrecadação de tarifas; remoção de cascos; organização da guardar portuária; fiscalização de obras; informações (à Antaq) sobre infrações; etc); e uma dúzia de outras tarefas, mas essas, ademais, sob coordenação das autoridades marítima e aduaneira (art. 18).
Dito de outra forma, e em linguagem mais coloquial: a cabeça e a caneta seguirão com os órgãos de Brasília; enquanto os braços e as pernas utilizadas seriam os dos órgãos locais!
A pergunta que não quer calar é se e como eventuais concessionários (privados), com função de administração portuária, aceitarão e atuarão dentro desses contornos. Ou, alternativamente, se e o que Brasília concederá ao concessionário (privado), mormente do que vem sendo negado às administrações sob empresas estatais. Vale acompanhar!
E mais: com a efetivação de desestatizações das administrações portuárias anteveem-se possíveis dificuldades adicionais. Tanto para eventual implementação de modelo “Land Lord”, amplamente majoritário mundo afora (descentralizado, autônomo e público), como para iniciativas de revisão da Lei nº 12.815/13; cujo contencioso só vem aumentando. Por quê? Porque tal arranjo passaria a estar cristalizado também em contratos de concessão, agregando novos riscos de judicializações.
Para além do que reluz... que, sim, é ouro!
E o mais intrigante: contrariando a justificativa de “atração de investimentos” e o aceno de “objetivo não-arrecadatório”, ao se analisar a documentação da desestatização da SPA, enviada ao TCU, constata-se que: i) o “investidor” precisaria aportar relativamente recursos muito pequenos (e, bem assim, no momento inicial): são as receitas próprias e convencionais do Porto que bancarão a maior parte dos investimentos; e ii) a União acabaria sendo a primeira beneficiária da desestatização ... se consumada: ela receberia no curtíssimo prazo, como acionista (quase único) e/ou como poder concedente, algo da ordem de R$ 4 bilhões!
A título de comparação, esse é o investimento (CAPEX) previsto para o túnel; e o dobro de todo o especificado para o Porto ... ao longo dos 35/40 anos! Se os recursos foram/serão gerados pelas operações do Porto de Santos, por que não serem totalmente reinvestidos nele próprio? Ou na infraestrutura conexa? Não faz mais sentido? Está aí uma bandeira que poderia ser encampada pelas lideranças do setor portuário e da região!
A governança do Complexo Portuário, uma eficiente articulação entre Porto e os diversos segmentos da malha ferroviária na Baixada, um planejamento sistematizado da relação Porto-Cidades-região, e uma série de outras lacunas e conflitos das iniciativas/ações pontuais no processo de desestatização, em si, seria suficiente para constituir uma agenda (paralela) específica.
Ou seja, há outras faces, outras dimensões da desestatização portuária que, possivelmente, querendo ou não, ocuparão a agenda dos próximos anos. Ou das próximas décadas.
* Engenheiro Eletricista e Economista, Pós-graduado em Engenharia, Administração de Empresas, Direito da Concorrência e Mediação e Arbitragem.
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