Por Guilherme Henrique Pereira*
Arminio Fraga (ex- presidente do Banco Central), Edmar Bacha (professor e Conselheiro do banco BBA) Pedro Malan (ex-Ministro da Fazenda), publicaram (Folha, 17/11/22) uma carta aberta ao Presidente eleito, cuja inexistência representaria contribuição muito positiva à formulação da futura política econômica. Provocou incômodos em muitos profissionais devido a clara demonstração de que os autores vivem em uma ilha de prosperidade restrita a poucos amigos, onde a intensidade do egoísmo sequer permite que alguém fale na possiblidade de melhorias para outras atividades ou outras faixas da população.
Provocou incômodos porque os autores utilizaram o tempo todo velhos chavões de há muito abandonados pelos economistas ativos na pesquisa e atualizados com os avanços das ciências econômicas.
Provocou incômodos porque demonstraram extrema insensibilidade com a profunda desigualdade e fome que sempre marcaram e que se agravaram nos últimos anos no Brasil. Em vez de buscarem utilizar o prestígio dos cargos que ocuparam para mobilizar profissionais atualizados para pensar soluções inovadoras, preferiram a posição de leoninos defensores dos interesses do setor de atividade em que trabalham. Aliás, isso seria normal no mundo em que vivemos, mas não é razoável a retórica de que é nobre cuidar da desigualdade, desde que antes sejam protegidos os ganhos dos amigos da ilha de prosperidade.
Os autores afirmaram que compartilham com as preocupações “...sociais e civilizatórias...” do Presidente manifestadas em seu discurso na COP-27, mas ressalvam que “O desafio é tomar providências que não criem problemas maiores do que os que queremos resolver.” Citando em seguida movimentos nos mercados bursátil e financeiro como sinais de reprovação à proposta de alteração no chamado “teto do gasto”, para deixar claro o quê antes colocaram nas entrelinhas: primeiro “a responsabilidade fiscal” – gerar superávits primários - para depois pensar em combater a fome e a pobreza. Esta tem sido a tônica destes senhores e seus antecessores há décadas. E na tentativa de defender o “Teto do Gasto”, leia-se gerar superávit primário:
“O teto de gastos não tira dinheiro da educação, da saúde, da cultura, para pagar juros a banqueiros gananciosos. Não é uma conspiração para desmontar a área social.”
Esqueceram ou fingiram que não leram a PEC 95 que fixou teto para as “Despesas Primárias”. É bom explicar para quem não é do ramo, que tal categoria orçamentária não inclui as despesas financeiras (pagamento de juros aos rentistas que vivem da dívida pública), que podem crescer sem limitação. “Despesas Primárias” são justamente aquelas prioritárias para a população. Se a famigerada PEC não tira dinheiro também não permite colocar em termos reais, o efeito negativo pode ser alto. Mas, pode tirar se os juros subirem – as despesas financeiras crescem, como aconteceu nos últimos anos, restando menos para os demais itens da despesa.
Em outro trecho da carta deixam claro qual é o negócio que, em suas opiniões, deve ser prioritário:
“Uma economia depende de crédito para funcionar....”. Não é exatamente isso que os economistas aprendem em sua graduação; a afirmação correta é: uma economia depende de investimentos para funcionar. Investimentos são realizados em maior parte pelos governos e, complementarmente, pelas empresas. As empresas investem seus lucros e complementam com empréstimos de longo prazo que no Brasil é predominantemente fornecido pelos bancos públicos. Logo, devagar com o andor poque o sistema financeiro não é exatamente santo e muito menos isento de ataques especulativos como os vistos nas últimas semanas.
Enfim, todos os parágrafos da carta encerram entrelinhas de defesa de um negócio, sob o manto de uma suposta justificativa teórica que está longe de permanecer de pé diante dos avanços nas ciências. Tampouco, parece ético diante das enormes desigualdades e fome.
Logo, não foi por acaso que recebeu muitas críticas em cartas abertas de economistas com larga experiência e acreditada produção científica. Uma delas, começou logo afirmando que discorda do começo ao fim, por isso penso que não é necessário continuar comentando aqui todos os argumentos equivocados. Vamos as proposições dos incomodados com a missiva superficial, porém provocadora porque insiste na continuidade de um modelo perverso, tão perverso e assustador que perdeu a eleição. Tão assustador que nem os autores tiveram coragem de apoiar.
A primeira carta resposta que li foi publicada em Carta Capital (18/11/022) pelos competentes economistas Guilherme Lacerda e José Antonio Alves Junior que evidenciaram equívocos e omissões dos autores relacionados ao uso e interpretações de instrumentos utilizados na gestão fiscal, falhas que permitem e mascaram para os leitores mais apressados a apologia contida nas entrelinhas da missiva. Ilustrativo da indignação desses autores aparece, dentre outros, no seguinte parágrafo da carta:
“Ilustres economistas, já faz muito tempo um de vocês cunhou a expressão “Belíndia” para expressar a vergonhosa realidade daquele tempo em nosso país. Passadas mais de cinco décadas, o que temos? A geração de vocês, a nossa geração, fracassou. Temos que reconhecer isso. Os postulados de vocês são os mesmos de antes. Não deu certo. O grande físico dizia que burrice é “continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes.” Então, tenham um pouco mais de cuidado ao formular suas prescrições.”
A segunda carta que li está assinada também por pesos pesados da pesquisa brasileira em macroeconomia: José Luis da Costa Oreiro, (UnB), líder do Grupo de Pesquisa Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento; Luiz Fernando Rodrigues de Paula, (UFRJ) e vice-Líder do Grupo de Pesquisa; Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-minstro da Fazenda e professor emérito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), Kalinka Martins da Silva, (IFG); e Luiz Carlos Garcia de Magalhães, Economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Logo no início já registram o tom em que escreverão a carta aberta ao Presidente Lula, em contraposição a primeira com conteúdo ameaçador de responsabilização do discurso do futuro presidente de priorizar o combate à pobreza como causa dos movimentos ruins (para eles) do mercado financeiro:
“A parte da defesa da civilização e da democracia que os citados economistas fizeram em sua carta, discordamos do início ao fim da missiva escrita por eles.”
Relembrando, em resumo, as mensagens da missiva inadequada no conteúdo e na oportunidade:
- uma narrativa de que concordam com o propósito de combater a pobreza. De fato, apresentou-se apenas como tentativa de amenizar a frieza que viria na sequência;
- o mercado financeiro é essencial ao funcionamento da economia (na visão deles, cabe ressaltar) e é muito sensível às medidas de política econômica, sobretudo as relacionadas ao gasto público (posto que as despesas financeiras devem ser preservadas, já que é a principal fonte de lucros dos rentistas, dos quais os bancos são os intermediários);
- o teto do gasto é essencial para disciplinar (na verdade limitar) as despesas com gastos primários (saúde, educação, segurança, investimentos, assistência social);
- é necessário gerar superávit primário, para garantir taxas de inflação sob controle, o emprego e as possibilidades de gastos sociais, portanto, prioritário. De fato, há aqui uma tentativa de esconder o óbvio: se o Governo prioriza o superávit fiscal, a contrapartida será o aumento da pobreza.
Os autores desta segunda Carta desmontam com abundância de argumentos e dados empíricos todos os pontos da missiva sob repúdio. Vejamos alguns trechos apenas como ilustração e convite para que todos a leem: (Correio Brasiliense, 18/11)
“A ideia de que o teto de gastos é fundamental para garantir a disciplina fiscal é uma falácia. Em primeiro lugar, o teto de gastos se mostrou incapaz de impedir que o Governo Bolsonaro não apenas realizasse um volume de gastos de R$ 795 bilhões extra teto em 4 anos, como não impediu a criação de novos gastos públicos a menos de seis meses das eleições, algo que é explicitamente vedado pela legislação eleitoral. Deste modo, o teto de gastos não impediu o maior populismo eleitoral da história da República sob o governo de Jair Bolsonaro, com enorme complacência do mercado financeiro”.
“No debate sobre o ajuste fiscal ... existe um elemento ausente,...: os gastos com o pagamento de juros da dívida pública. Em 2022 os gastos com juros serão de mais de R$ 500 bilhões, devendo ultrapassar os R$ 700 bilhões no próximo ano. Trata-se da segunda maior rubrica do orçamento público, ficando atrás apenas dos gastos com previdência social. Esse volume de pagamento de juros é o maior programa de transferência de renda do mundo, só que é uma transferência de renda de toda a sociedade para o 1% mais ricos de nossa população........ Por outro lado, o volume pago com juros não decorre de um elevado endividamento público como proporção do PIB (atualmente em 77,12% do PIB segundo dados do Banco Central do Brasil para setembro de 2022). A título de comparação a Espanha tinha, em março de 2022, uma dívida pública como proporção do PIB de 117,7%, mas paga apenas 2% do seu PIB como juros sobre a dívida pública. Não existe uma relação direta entre o tamanho da dívida pública como proporção do PIB e o custo de carregamento da dívida pública, o qual é, em larga medida, determinado pela política monetária conduzida pelo Banco Central.”
“......No Brasil a verdadeira luta de classes não é entre capital e trabalho, mas entre o capital financeiro, de um lado, e os trabalhadores e o capital produtivo do outro. Esse é o conflito de classes que Vossa Excelência deverá arbitrar ..... Neste contexto, entendemos ser absolutamente legítimo e viável abrir espaço no orçamento para viabilizar gastos públicos imprescindíveis para o enfrentamento da enorme crise social e econômica que o país está passando. Isto deverá ser combinado, quando estiver empossado, com a adoção de uma nova regra fiscal que combine flexibilidade na execução do orçamento com sustentabilidade da dívida pública no médio e longo prazo.”
De minha parte, chego a conclusão que é absolutamente necessário que o atual regime fiscal pactuado no chamado “Teto do Gasto” é desastroso para a população e deve ser substituído por outro que priorize os investimentos sociais. Nos termos da regra atual, pode-se dizer que é um absurdo estabelecer uma regra de limite de gastos na qual as despesas de interesse do mercado financeiro sejam liberadas e os investimentos de interesse do povo sejam limitados. Como consequencia a PEC da “Transição” se impõe como necessidade e não como ameaça de desequilíbrio fiscal, alíás algo sem precedente nas gestões anteriores do presidente eleito.
*Professor universitário e Doutor em Ciências Econômicas.
Foto ilustração: reprodução internet