Fabrício Augusto de Oliveira*
Há um otimismo justificado, fora do circuito bolsonarista, de que com o novo governo que toma posse em janeiro o Brasil não somente poderá resgatar sua imagem externa como, internamente, tornar-se novamente candidato a reconciliar-se com valores caros à democracia, como os que dizem respeito, por exemplo, à defesa e proteção da vida e dos direitos humanos, ao combate mais efetivo à pobreza, ao respeito às minorias e às instituições democráticas e, entre as principais preocupações globais da atualidade, à preservação do meio ambiente e à punição dos que cometem crimes contra a natureza. A libertação do país do Cavaleiro do Apocalipse, que semeou por quatro anos seu ódio contra a humanidade, manejando um forte poder de destruição, representa, de fato, uma significativa esperança de ser possível sua reconstrução, ainda que essa exija muitos sacrifícios.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, neoliberal de carteirinha e parceiro de Bolsonaro no corredor da morte dos pobres, jacta-se, no entanto, de entregar o país para o novo governo numa situação fiscal melhor do que a que recebeu em 2018. A projeção de um superávit primário nas contas públicas superior a R$ 20 bilhões, fato inédito desde 2013, e de contenção da dívida bruta/PIB em torno de 75%, que poderá ser inferior à de 2018, são os indicadores apontados pelo ministro para enaltecer sua política e administração com competência. E, como costuma ressaltar, isso em meio aos impactos provocados pela pandemia sobre a atividade econômica. Um gênio, como se considera, da política econômica.
O que o ministro não revela é a forma como esses resultados têm sido alcançados. Para obtê-los promoveu-se, de um lado, um desmonte das políticas públicas essenciais para a população principalmente nas áreas da saúde, da educação, da habitação e do meio ambiente, que foram devidamente sucateadas com a redução dos gastos e dos investimentos, faltando recursos no final de governo até mesmo para a emissão de passaportes. De outro, deixou-se de reajustar os salários dos servidores públicos ao longo de quatro anos do governo Bolsonaro, derrubando, em termos reais, seus rendimentos, assim como para o salário mínimo, que impacta os gastos previdenciários, também não foi concedido nenhum aumento real neste período. Para completar o quadro, conseguiu-se suspender, sob o argumento da necessidade de recursos para enfrentar a pandemia, o pagamento de precatórios, o qual deverá ser retomado mais à frente e que, estimativamente, deve ir bem além de R$ 100 bilhões. Contou-se, ainda, com ganhos espetaculares de expansão da receita tributária federal que cresceu, em 2021, 17,4%, em termos reais, e 8,8% até novembro de 2022, com o que não se poderá mais contar com a recessão mundial que se avizinha.
Graças à implementação de uma política de cunho keynesiano para enfrentar os efeitos da pandemia sobre a atividade econômica e o emprego e, posteriormente, para seduzir a população para garantir a reeleição de Bolsonaro, o que não ocorreu, o governo conseguiu melhorar o desempenho do PIB em 2021 e em 2022, crescendo 5% e 3%, respectivamente. Com isso, registrou uma expansão média anual do PIB em 2019-2022 de pouco mais de 1% do PIB, o que não difere muito dos resultados que têm sido alcançados desde 2015. Foi este melhor desempenho combinado com a melhoria no campo fiscal, nas condições anteriormente descritas, que despertou em Paulo Guedes a soberba sobre a sua genialidade. Só que estes resultados não se ampararam em bases sólidas e sustentáveis para garantir sua continuidade. E são essas dificuldades, principalmente no campo econômico, que o novo governo deverá enfrentar enquanto promove a reconstrução das áreas sucateadas por Bolsonaro e Guedes.
De acordo com o Boletim Focus, de 19 de dezembro deste ano, a expectativa de crescimento do PIB, em 2023, era de apenas 0,79%, o que significa ganhos bem reduzidos para a expansão da receita pública. De outro lado, a expectativa da inflação era de 5,17%, bem acima do centro da meta, indicando que a taxa de juros, a Selic, deve permanecer elevada ainda por bom tempo, impactando negativamente o estoque da dívida pública. Para agravar este quadro fiscal, o futuro governo conseguiu a aprovação de uma PEC da transição autorizando a realização de gastos fora do teto correspondentes a R$ 145 bilhões para o Auxílio Brasil/Bolsa Família, a reconstrução de algumas áreas sucateadas e cumprimento de outras promessas de campanha. Resumindo: a deterioração da situação fiscal e o aumento do endividamento parecem inevitáveis neste quadro, com todas implicações que acarretam para as expectativas dos agentes econômicos.
Do front externo também não se poderá contar com nenhuma ajuda para a superação dessas dificuldades. É cada vez mais certo que uma recessão ameaça se instalar muito rapidamente no mundo, à medida que os países mais desenvolvidos continuam aumentado as taxas de juros para combater uma inflação elevada que tem demonstrado resiliência à política monetária: na Inglaterra, a mesma já chegou a 3,5%, na Zona do Euro, a 2%, com os dois últimos aumentos de 0,5 ponto percentual realizados em dezembro, e, nos Estados Unidos, a 4,5% (teto), depois do sétimo aumento consecutivo, com expectativa de que avançará para 5% na próxima reunião do FED, devendo permanecer em patamar elevado nos próximos anos. Por tudo isso, não será nada fácil cumprir a promessa de reconstrução do país pelo novo governo após a política de terra arrasada feita pelo atual que, felizmente, sai de cena.
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social e do Grupo de Estudos de Conjuntura de Departamento de Economia da UFES, articulista do Debates em Rede e autor, entre outros, do livro “Uma pequena história da tributação e do federalismo fiscal no Brasil”.