Guilherme Henrique Pereira*
Será adequado e justo a história registrar um certo movimento na cena social e política de um país com o nome de alguém vazio de conteúdo intelectual, incapaz de formular um pensamento consistente e lógico, cuja popularidade vem de fofocas e fake news nas redes sociais? Parece que os fatos também não autorizam o adjetivo dado ao movimento. É fato que o cidadão obteve 58 milhões de votos, mas não se pode afirmar que todos estes eleitores são signatários do movimento. Há neste 58 milhões uma parcela importante que depositou seu voto nele pela razão de serem radicalmente contra o seu oponente. Na verdade, um ódio incompreensível, pela simples razão de preferirem a barbárie a qualquer outra possibilidade.
Os acontecimentos em Brasília do dia 8 janeiro foram reprovados por 90% dos seus eleitores (pesquisa Data Folha), portanto, apenas 10% seguiram sua suposta orientação, ou de algum de seus prepostos. Se em todo tempo pregou a negação do sistema eleitoral e de poderes constituídos, mas apenas 10% de seus eleitores o seguiram de fato, parece significar que o restante, maioria absoluta, ainda que o ideário seja verbalizado de forma tosca, votaram por outras razões, dentre as quais destacam-se o antilulismo, o conservadorismo na coletânea de valores sociais (pauta de costumes, para alguns) e a concordância com uma política econômica dita liberal.
Todavia, uma parcela, provavelmente os seguidores fanáticos (acampados e seus simpatizantes), votaram pela pregação negacionista: negação da ciência – desconstrução das universidades e programas de pesquisas, resistência à vacinação e, às vezes, aparece a afirmação de que a terra é plana – a negação do sistema político – apologia à ditadura, não aceitação do resultado eleitoral – a negação das instituições republicanas – expressa principalmente nos ataques ao poder judiciário – a negação das mudanças climáticas, consequentemente das políticas ambientais. Enfim, proposições tão absurdas e colocadas de formas tão simplistas que mesmo para as camadas, com menor nível de leitura fica difícil o convencimento.
Então é preciso criar algo com aparência positiva, o que deve explicar a incorporação pelo movimento do combate ao comunismo (propositadamente confundido com esquerda para incluir todos os adversários) e a degradação dos costumes como fundamental para continuidade da pátria livre e de cidadãos de bem. Para significativa parcela da população não é muito compreensível de imediato os benefícios que podem ser gerados por esta proteção, então é preciso criar o medo e o engodo sobre os malefícios do comunismo e da evolução dos valores sociais.
Por desconhecimento ou por absoluto desinteresse não explicam o modelo teórico do sistema social e de produção comunistas, nem que o mundo do século XXI de fato vive predominantemente no sistema capitalista; tampouco que as teses defendidas pelos comunistas para organização da sociedade, para os valores sociais e para a produção dos bens já foram superadas e flagrantemente abandonadas em todo o mundo, embora, ainda possamos falar de países em diferentes graus de orientação socialista, o que não deve ser confundido com comunismo, obviamente. Portanto, algo definitivamente fora de cogitação na atualidade. Mas eles intencionalmente associam ao comunismo com interpretações falsas, notícias fora de contexto, textos escritos em épocas muito diferentes das atuais, assim por diante. O propósito é mostrar o caos, ainda que existente só na narrativa, que a esquerda (comunismo, tanto faz para eles) pode trazer para a pátria livre. Construir o medo sobre o fantasma criado, logo, a necessidade da proteção contra tudo isto.
O engodo com relação a chamada pauta dos costumes (valores sociais) não é menos absurdo, talvez até mais grave do ponto de vista da sociabilidade. Também se sustenta em narrativas fantasiosas e passa por uma construção auxiliar. Trata-se, principalmente, de promover a rejeição ou desrespeito a algumas minorias como, por exemplo, os homossexuais, negros, mulheres, índios, etc. O processo evolutivo da civilidade já fez exageradas concessões, segundo eles, que precisa ser revertido sob pena de destruição da família, a unidade mais sagrada da organização social, ao mesmo tempo que pode ser uma agressão aos ensinamentos bíblicos. O que nunca é dito é que o processo de evolução cultural e civilizatório de um povo não passa por dirigentes ou governos, que podem atrapalhar ou ajudar a acelerar, mas é essencialmente um processo social. Portanto, não deveria estar como determinante na agenda de trabalho de um governante.
Assim, chegamos ao nosso argumento final: há sim um movimento que muitos sociólogos e filósofos já estudam, posto que surge em vários lugares do mundo, inclusive no Brasil onde parece ser mais exacerbado e que tem a face da negação de tudo que funciona, portanto, deve receber o nome de movimento negacionista. Tem sido chamado também de extrema direita, mas esta denominação também não parece adequada porque a direita liberal - em todos os seus matizes - tem um papel importante a cumprir para sustentação da democracia e não é bom que sua imagem seja borrada pelos negacionistas.
O brasileiro em evidência é sem dúvida um aproveitador que surfou na onda negacionista, embora também beneficiado por outras circunstâncias que se somaram, para chegar ao posto inimaginável que poderia alcançar, dadas suas qualidades. Assim como vários outros eleitos para diversos cargos nos diferentes níveis da federação, senadores, deputados, governadores e prefeitos. Infelizmente chego a conclusão de que o movimento negacionista já é expressivo e muito perigoso. É importante que a direita brasileira, por seus membros que ainda pensam, retome o seu protagonismo retirando seu apoio ao movimento irresponsável, agora também golpista e terrorista.
*Professor universitário e articulista.