Fabrício Augusto de Oliveira
Ainda não se tem clareza sobre o projeto de criação de uma moeda comum para as transações de comércio entre o Brasil e a Argentina. O governo brasileiro tem vendido a ideia como um grande trunfo para impulsionar a atividade econômica nos dois países e injetar oxigênio na economia de ambos, à medida que deixariam de depender, como atualmente, do dólar nessas relações. Alguns economistas do atual governo e mesmo de outros que a ele não se filiam, têm apressadamente, dado aval à medida. Permanece, no entanto, a dúvida: será que ele de fato representa um benefício para os dois países e, mais especificamente, para o Brasil?
Para entender melhor a questão é preciso considerar que essa moeda comum deverá ter como referência a moeda dos dois países, o Real, no caso do Brasil, e o Peso argentino, mas essas continuarão preservadas como moeda nacional. A base para a formação ou definição da nova moeda que irá registrar essas relações deverá apoiar-se, assim, em um mix dessas duas moedas, o qual ainda depende de estudos que serão realizados. Surge, daí, um primeiro problema: o de sua volatilidade.
Sabidamente, desde que abandonou a conversibilidade plena do peso em dólar, em 2002, embora registrando alguns períodos fugazes de crescimento, a Argentina mergulhou numa grande crise econômica, com elevado endividamento, baixas reservas externas e grandes dificuldades para a obtenção de créditos externos, sem ter conseguido, até os dias de hoje, reencontrar-se com a estabilidade monetária, Só para se ter uma ideia melhor sobre essa questão, a inflação na Argentina aproximou-se, em 2022, de 100% no ano, com elevadas taxas de juros e minguadas reservas externas.
No Brasil, onde a inflação foi de 5,8% em 2022, tem-se conseguido manter, desde o lançamento do Plano Real, em 1994, uma relativa estabilidade, apesar da perda de controle de preços em alguns anos de crise mais aguda, como ocorre no momento como consequência da pandemia, da guerra na Ucrânia e do cenário de aumento da inflação mundial, com reservas externas robustas. Ora, nessas condições em que são extremamente desiguais as condições macroeconômicas dos dois países, em termos de inflação, taxas de juros, dívida pública e reservas internacionais, torna-se impossível garantir qualquer estabilidade mínima requerida para viabilizar essas transações. Ou seja, não há, nem de longe, um mínimo de homogeneidade entre as duas estruturas econômicas requerida para fazer que a integração sugerida seja benéfica para os dois países.
Nem o Real, nem o Peso são moedas internacionalmente aceitas e, por mais que o desenho da moeda comum seja bem feito, a mesma também não o será, o que significa que sua conversão para o dólar, a moeda de reserva internacional, deverá ser realizada de acordo com as oscilações de ambas. Se assim for, a tendência é de que a Argentina seja beneficiada nas relações de troca, podendo alterar o fluxo do comércio, no qual o Brasil atualmente se apresenta superavitário, tornando-se deficitário, ao contrário da Argentina poderá ver melhorar seu desempenho com este novo quadro.
Um exemplo simples ajuda a esclarecer essa questão. Supondo que a moeda comum estabelecida, que tem sido provisoriamente chamada de Sur, esteja cotada, à época, em 10 unidades monetárias (u.m) e que o dólar, nessa moeda, em 5 u.m, o que nos daria uma paridade de 2. Como ela não deverá ter conversibilidade, essa hipótese serve apenas para ver o que ocorrerá em estruturas econômicas com tantas disparidades. Considerando uma inflação média de 10% nas duas moedas (Real e Peso), a moeda comum deverá ser reajustada para 11 u.m. Supondo, ainda, apenas para simplificar, que o dólar não tenha sido contaminado pela inflação e permanecido em 5 u.m. Isso significa que a paridade em relação ao dólar seria aumentada para 2,2 Sur para sua aquisição.
Em queda devido ao aumento da participação da China no comércio com a Argentina, as exportações brasileiras, em 2022, para este país, foram de US$ 15,3 bilhões e as importações de US$ 13,1 bilhões, com um superávit, portanto de US$ 2,2 bilhões. Independentemente de qual país será superavitário nessa nova situação, resta a pergunta: o que fazer com as reservas do Sur, qual o destino dar às mesmas e quem arcará com os seus custos?
Não sendo uma moeda aceita internacionalmente, ela não poderá ser usada para pagamentos a outros países, seja de dívida, seja de importações em geral. Sendo as exportações financiadas, com prazos definidos para pagamento, os exportadores receberão seus créditos com uma moeda desvalorizada em relação ao dólar, incorrendo, consequentemente, em prejuízo. Mesmo que o Banco Central realize operações de antecipação de contratos de câmbio, estes deverão incorporar algum risco, que não deverá ser pequeno, para a nova moeda, dada a sua volatilidade, o que não elimina esse prejuízo, fazendo com que os exportadores prefiram receber em dólar. Mas, isso não é tudo.
Para funcionar, mesmo nessa situação, é preciso considerar que essa conta deverá, em algum momento, ter um limite e ser fechada, caso contrário as autoridades monetárias do país superavitário se verão com um montante de Sur sem poder usá-los para qualquer finalidade, a não ser nas relações com a Argentina. Se, no caso do Brasil, que conta com um volume expressivo de reservas externas, em dólar, esse pagamento é perfeitamente possível, como a Argentina, que não conta com reservas e nem de acesso ao crédito externo poderá fazê-lo? Ou seja, como poderá e em que moeda saldar a dívida?
Enfim, são questões que precisam ser respondidas nesse novo arranjo, caso este vá realmente além do discurso, para tornar a moeda comum de fato benéfica para os dois países e não, ao contrário do que apontam as autoridades econômicas brasileiras e argentinas, um mecanismo que beneficie um em detrimento do outro.
*Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social e do Grupo de Estudos de Conjuntura do Departamento de Economia da UFES, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação.
Foto da ilustração: reprodução Internet
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