Guilherme Narciso de Lacerda e Antônio José Alves (*)
“A economia é importante demais para ficar só na mão dos economistas”
Luiz Davidovich, Presidente da Academia de Ciências do Brasil
As críticas do Presidente Lula ao Banco Central precisam ser debatidas com mais profundidade. As reações até agora se caracterizam pela superficialidade dos argumentos utilizados.
Os editoriais da mídia corporativa e os articulistas afinados com o mercado financeiro registram sua aversão a qualquer murmúrio que toque nos totens do establishment econômico. Já alguns analistas independentes tem realçado que apenas fazer alardes não resolve. Vozes do próprio governo procuram atenuar o clima, reafirmando que não está no horizonte uma iniciativa de se rever a Lei Complementar 179/2021, que aprovou a independência do Banco Central.
As tensões entre dirigentes políticos e os diretores de bancos centrais não são exclusivas do nosso país e nem dos nossos tempos. No pós-guerra estas reações foram frequentes em diversos países, como ocorreu, por exemplo, no Canadá e na Itália, nos anos 1960 e 1970, e em diversos países da OCDE nas décadas seguintes.
A intocabilidade do BC ganhou força na Europa desde os anos 1950, com respaldo na ortodoxia traçada pelo Bundesbank na Alemanha, país que carregava o trauma de hiperinflações no período entre guerras. Ao constituir, em 1992, a Comunidade Europeia o Tratado de Maastricht fortaleceu a concepção de independência do Bancos Centrais frente a interesses políticos e econômicos. Foram erigidos princípios gerais, com destaque para a impossibilidade de demissão ad nutum dos seus diretores e a vigência de mandatos alternados, não coincidentes com os dos líderes políticos.
A exigência das diretorias dos Bancos Centrais prestar contas ao Legislativo é uma prática comum a quase todos. Esta é a única situação em que o BC se submete à discussão de suas decisões e de seus argumentos técnicos. Por aqui, essa exigência recente, definida junto com a concessão da independência, tem sido apenas uma formalidade e precisa ser alvo de um debate mais amplo.
É imperativo que se tenha conhecimento dos argumentos que o BC se apoia para tomar suas decisões, especialmente no que tange à definição da taxa básica de juros. Mas é indispensável ter informações detalhadas e justificadas dos fundamentos utilizados.
Os termos das Atas do Copom apresentam conceitos e argumentos que precisam ser melhor explicados ao Brasil. A importância do que um seleto grupo de técnicos elabora e decide é imensa. Não é possível apenas ler as manifestações e assumi-las como sendo interpretações exatas e únicas para a formulação da política monetária.
Os analistas, a academia, os formadores de opinião, os empresários e trabalhadores, os estudiosos do tema, enfim, todos, e, em lugar especial o Senado Federal, precisam ir mais fundo na avaliação dos pressupostos técnicos e conceitos utilizados para sustentar as decisões tomadas. Os argumentos apresentados são sempre acatados sem verificar se eles estão sustentados em interpretações adequadas da realidade e se são compatíveis com fundamentos teóricos exatos. Eles são colocados como dogmas e, como tal, ficam intocáveis. Aqueles que reagem são logo tomados como “estranhos no ninho” e classificados como alheios à boa lógica dos postulados clássicos da formação dos mercados e das expectativas dos agentes.
Um dos principais conceitos que precisam ser abertos é o de “Taxa neutra de juros real”. Ela corresponde à taxa tida como de equilíbrio, não afetando os preços de bens e serviços e assegurando uma trajetória de crescimento estável. É a referência mais importante para calibrar a política monetária. É estimada em modelos teóricos que leva em conta cálculos de crescimento potencial do PIB, expectativas dos agentes econômicos, prêmio de risco do País e fatores estruturais de cada economia. Ela é, portanto, uma definição construída a partir de conceitos pré-estabelecidos e consultas a agentes do próprio mercado financeiro. Há um reconhecimento geral dos estudiosos do tema que na definição da taxa neutra pode existir um elevado grau de incerteza derivada das premissas inseridas no modelo.
Atualmente a taxa de equilíbrio da economia brasileira está em 4%, tal como se apresenta na mais recente Ata, datada de 01 de fevereiro. Ela estabelece o patamar de referência que, segundo o BC, assegura uma estabilidade monetária. A partir dela são feitas as previsões para um horizonte relevante. No documento recém publicado evidenciou-se que os cenários internacional e doméstico indicavam um comportamento dentro dos parâmetros estimados anteriormente. Os diretores ressaltaram que “no período recente, observa-se uma normalização nas cadeias de suprimento e uma acomodação nos preços das principais commodities, levando a uma redução nas pressões inflacionárias ligadas a bens”.
No âmbito da economia doméstica o texto explicita a sua perda de tração, ao ressaltar que “o conjunto de indicadores divulgados desde a última reunião do Copom segue corroborando o cenário de desaceleração do crescimento esperado pelo Comitê. Observa-se queda nos indicadores de confiança e arrefecimento nos indicadores de produção industrial, de comércio e de serviços. O mercado de trabalho, que surpreendeu positivamente ao longo de 2022, continua mostrando sinais de desaceleração, com queda nas admissões líquidas do Novo Caged e relativa estabilidade na taxa de desemprego, proveniente de recuos na população ocupada e na força de trabalho”.
Esta constatação era esperada pois os resultados da atividade econômica divulgadas mensalmente pelo IBGE tem indicado o raquitismo do desempenho econômico, com quedas nos índices de vendas no varejo espalhados por todos os segmentos.
Nestes termos, porque então manter uma taxa de juros real que é o dobro da taxa de equilíbrio? Sim. Atualmente a taxa real de juros no Brasil está ao redor de 8%, levando em conta a inflação projetada. Essa é a pergunta que precisa nortear o debate. Porque é inexorável o Brasil conviver com 8% e não dois ou três pontos a menos e ainda se mantendo acima da taxa de equilíbrio?
O BC deve explicações à sociedade brasileira ao sustentar uma taxa real de juros que mantém o país isolado no topo do ranking mundial, superando em mais de três pontos as de México, Chile, Colômbia, Hong Kong, países que lhes seguem na lista.
É indispensável abrir o modelo que o BC utiliza para sustentar a manutenção da SELIC em patamar tão elevado. O debate se prende aos argumentos oferecidos pela Autoridade Monetária e não avança até as implicações de uma taxa real tão elevada para se ajustar à construção da política fiscal. A cada 1% de variação da SELIC o impacto, em números aproximados, é de R$230 bilhões no custo anual da rolagem da dívida mobiliária federal. Ou seja, R$ 85 bilhões superior ao montante aprovado na PEC da transição. Nestas condições, não há ajuste fiscal com cortes de despesas públicas que dê conta.
A gestão monetária é uma peça essencial na determinação do emprego, do investimento e do crescimento. O desafio é como coordenar a política monetária e a política fiscal para garantir o pleno emprego e a estabilidade macroeconômica, o que vai além da estabilidade inflacionária.
Enfim, há vários aspectos que deveriam ser tratados em um debate econômico salutar, superando as manifestações simplórias e reativas ao chamamento feito pelo Presidente da República.
O Brasil precisa suplantar uma cultura de juros altos, e mesmo abusivos, arraigada nos corações e mentes e que constrange o desempenho da economia brasileira. Esta situação suga continuamente os recursos financeiros da economia real e impede a sustentação de um crescimento econômico com estabilidade monetária.
Já passa da hora dos líderes dirigentes deste país assumirem uma discussão aberta na sociedade sobre a financeirização destrutiva que trava avanços na produtividade econômica nacional.
*Antônio José Alves Junior, doutor em Economia pelo IE/UFRJ, Professor do Departamento de Economia da UFRRJ e coordenador do ECSIFIN – Laboratório de Economia e Conjuntura do Sistema Financeiro.
Guilherme Narciso Lacerda, doutor em Economia pela Unicamp, mestre em Economia pelo IPE-USP, professor do Departamento de Economia da UFES. Foi diretor do BNDES (2012-2015). Autor do livro “Devagar é que não se vai longe – PPPs e Desenvolvimento Econômico”, publicado pela Editora LetraCapital.
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