Por Marcelo Sinal Lima*
A participação militar e das polícias na vida política brasileira é uma característica da própria história do país, ora exercida de forma explícita e brutal, ora de forma velada. Os militares e policiais são atores políticos relevantes, e assim devem ser compreendidos, haja vista a enorme influência que exercem pela ameaça da exceção, do uso da força e, mesmo, pelas interseções pouco republicanas entre eles e os grupos civis.
Desde a passagem do poder político aos civis em 1985, pondo fim à ditadura iniciada em 1964, essas forças passaram a disputar, diretamente, de forma intensa, espaços de representação política no Legislativo e no Executivo. Nos últimos seis anos, a influência dos mesmos sobre o aparato de Estado cresceu de forma exponencial, particularmente no governo do último Presidente, quando chegaram a ocupar milhares de cargos, eletivos ou não, expressando uma situação anômala, a de um paradigma de governo eleito legitimamente, mas dominado pela presença dos mesmos em cargos chaves e pela predominância de uma mentalidade autoritária, salvacionista e excludente, que caracterizam militares e forças de segurança desde sempre.
Segundo o Professor Manuel Domingos Neto (2021), as Forças Armadas brasileiras, padecem daquilo que ele define como um “dilema originário: serem policiais e militares”. Essa a razão de sua contínua ingerência em assuntos do governo civil, sua militância política, contida, durante a República, na quadra histórica compreendida entre 1985 e 2019, e, espera-se, retomada a partir do início de 2023.
Esse “dilema originário” representa, em termos fáticos, a hipertrofia dessas forças militares, que se apresentam caras, inoperantes e incapazes de exercer as atribuições constitucionais previstas nos Artigos 142 e 143 da Carta de 1988. Mais que uma anomalia, esse é um projeto de poder, pois o exercício das funções de polícia permite aos militares uma postura ativa na vida diária do país, alimentando a falsa narrativa de que exerçam o “Poder Moderador”, algo que no mundo Constitucional brasileiro existiu, apenas e tão somente, no Texto de 1824, e destinava-se à pessoa do Imperador. Essa narrativa encobre o desejo de exercerem o papel de tutores da vida nacional. Foi assim desde as décadas posteriores à Guerra do Paraguai, atingindo seu ápice entre as décadas de 1920 e 1970, quando se amotinaram por inúmeras vezes, travaram diversos combates, sustentaram a derrubada de governos eleitos e uma ditadura civil, almejaram, em conluio com setores da classe política, subverterem os resultados eleitorais, até assaltarem e se apoderarem do aparelho de Estado por 21 anos.
À cidadania e à classe política brasileira se impõe, de forma premente, principalmente a partir da divulgação da complexa trama que culminou na intentona de 8 de janeiro de 2023, com clara presença de militares de alta patente em todo o processo, uma atenção especial ao “dilema originário” das Forças Armadas. A persistência desse “dilema” sustenta a instabilidade institucional do país, permitindo com que a política seja sequestrada pelos interesses militares e por sua sanha por poder, por ganhos materiais e pela tutela do país. A construção da Democracia não resiste a esse dilema, pois o mesmo subverte suas bases e consolida o pensamento autoritário e excludente que caracteriza o Brasil desde sua fundação em 1500.
* Historiador. Mestre em História/UFES. Doutorando em Direito e Garantias Fundamentais/FDV. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Teoria Crítica do Constitucionalismo/FDV.