Por Guilherme Henrique Pereira*
O presidente Lula recentemente pautou o debate sobre a política monetária, cujas diretrizes são as mesmas há anos e, supostamente, justificam a prática de juros muito acima do padrão mundial, em alguns anos se colocando como os mais altos do mundo. Sem dúvidas, o Brasil precisa resolver este problema porque ele é decisivo para a retomada do desenvolvimento nacional. Todos que têm responsabilidade neste país, tanto faz se no setor público ou privado, precisam fazer coro contra esta política operada pelo Banco Central.
O noticiário repercutindo a fala presidencial sobre o nível da taxa de juros ficou repleto de comentários, alguns a favor e outros tantos criticando a impropriedade, deixando nas entrelinhas que estava havendo descaso ao controle da taxa de inflação. Despertou tanta atenção que o tradicional programa de entrevistas da TV Cultura (SP) resolveu entrevistar o presidente do Banco do Banco Central (BC). Despertou minha atenção o grande volume de críticas que apareceram sobre as ideias (ou falta de) apresentadas por ele que resolvi ouvir o vídeo que foi para o Youtube. De qualquer modo, cabe adiantar, que foi esclarecedora e deixou algumas pistas sobre a insistência em uma política monetária irracional.
No início do programa a leitura do currículo do entrevistado destacava sua experiência como funcionário de bancos comerciais. Fato que foi reforçado durante toda a entrevista por suas falas limitadas apenas ao conhecimento de operacionalidades próprias de funcionários de mesas do mercado financeiro. Nenhum destaque como estudioso da macroeconomia ou das condicionantes do desenvolvimento de uma nação, tampouco nenhuma experiência prévia como gestor de políticas governamentais. Este é um ponto que sugere que precisamos fazer um debate sério sobre a escolha de gestores públicos, processo que deveria levar em conta a adequação ao cargo da formação/experiência e sobre questões éticas. No caso que estamos comentando, ficou transparente a falta de visão de país, além da tese de um claro conflito de interesse posto que o BC é também uma agência reguladora do sistema financeiro. Como fiscalizar empresas que foram empregadoras? E que serão novamente empregadoras? Mas este é um debate que envolve todo o setor público e que ficará apenas registrado para a nossa reflexão.
Vamos aos principais pontos que marcaram a entrevista. Começando pela absoluta insensibilidade sobre as condicionantes do cargo de presidente da autoridade monetária ( no popular: não basta ser honesto, é preciso parecer honesto) que impõem certos comportamentos como obrigatórios. Vamos aos pontos:
Incoerência e Inconsistência
1. Perguntado sobre sua participação na campanha eleitoral, inclusive vestindo amarelo no dia da eleição e participando de grupos de whatsapp, respondeu com a maior naturalidade que durante os dois anos de trabalho fez amigos no governo e que não tinha nada de mais ele votar com os amigos. Mas, foi ele mesmo que disse em outra entrevista (Folha de São Paulo,7/02/2023) que “ [A independência] é muito importante por muitas diferentes razões. A principal razão, no caso da autonomia do Banco Central, é desconectar o ciclo de política monetária do ciclo político porque eles têm diferentes lentes e diferentes interesses"...Como essa desconexão pode ocorrer se o principal executivo se envolve publicamente em campanhas eleitorais?
2. Perguntado por que o BC reúne-se frequentemente com banqueiros e outros operadores do mercado financeiro e não faz o mesmo com outros setores da economia, respondeu que era necessário porque o BC é também agência reguladora, e que poderia reunir-se em outros momentos com o “setor real” da economia. Ora, é justamente por ser o fiscalizador que não pode ficar de conversinhas e jantares com os fiscalizados e ex ou futuros-empregadores. Isso parece óbvio, mas para ele não, dado o mundo particular apartado do Brasil que os modelos matemáticos criaram.
3. Muito ilustrativa a pergunta sobre a unanimidade dos diretores nos votos relacionadas as decisões do Comitê de Política Econômica. Pareceu até um pouco orgulhoso em dizer que durante seu mandato houve apenas dois votos discordantes. O jornalista problematizou dizendo que questões de política monetária são naturalmente polêmicas e que no mundo todo as decisões de BC dificilmente ocorrem por unanimidade como aqui; e sugeriu que poderia ser por falta da indispensável diversidade. A resposta foi surpreendente pois mencionou que havia proposta de aumentar o número de mulheres no colegiado. Foi necessário ser interrompido pelo alerta de que estavam falando de diversidade de pensamento. Sim, o jornalista tinha toda a razão uma vez que todos os diretores atuais são egressos do mercado financeiros, com currículos e formação muito semelhantes. Logicamente só conhecem a linguagem dos modelos matemáticos utilizados nas mesas de operação. Isso remete de novo para a necessidade de rever os processos de escolha e a outro problema ainda mais grave que tem a ver com as críticas frequentes de que o BC atua na defesa dos interesses do mercado financeiro e dos rentistas. Por maldade ou por ingenuidade não pode ser diferente posto que todos estão limitados ao mesmo conjunto de conhecimento e ferramentas. Fica claro que um BC para lidar com a complexidade de sua missão precisa ter profissionais com competências para pensar políticas governamentais, pesquisadores em ciências econômicas, profissionais do setor produtivo, e até um representante do sistema, etc.
Conhecimento e especialidade
1.Como é inexplicável juros tão altos, passou todo tempo falando de metas, banda da meta, curvas de risco, curvas de juros de longo e curto prazo, prêmios de risco, enfim uma parafernália de termos do jargão bancário que apareciam na fala dele com se tivessem vidas próprias na determinação da taxa básica de juros e a eles só restava dar voz para estes seres independentes.
2. Perguntado sobre risco fiscal, não enfrentou o desafio de tratar do assunto. Dispersou-se na resposta falando da relação dívida/PIB, déficit fiscal, etc. Ficamos sem saber o que pensa sobre este conceito e qual é hoje o risco fiscal no Brasil. É claro que não precisamos de estudar economia para saber que se refere a possibilidade do Governo dar um calote naqueles que aplicam dinheiro em títulos de Governo. Mas economistas sérios nos explicam que este risco no Brasil de já alguns anos é zero e mostram as razões. Primeiro, o Brasil não tem mais dívidas em moeda estrangeira, e se vier a ter ainda teremos ampla faixa de situação confortável dado que temos US$ 300 bilhões em reservas. A dívida governamental está denominada em Reais, portanto, em moeda própria, logicamente sob absoluto controle do país. Em tais circunstâncias é absolutamente fora da compreensão a narrativa de que os juros no Brasil são altos para compensar o (suposto) risco fiscal. Ao esquivar-se do tema, escondeu um gravíssimo entrave para o desenvolvimento de um país que é o efeito sobre a taxa de câmbio. Se o Brasil tem taxas de juros mais altas que os demais, aplicadores de mercado financeiro com moeda estrangeira direcionarão sua liquidez para comprar títulos brasileiros; o efeito será maior demanda por Reais, portanto, uma valorização, por exemplo, frente ao dólar e, na sequência, o barateamento de mercadorias importadas. O efeito desastroso é a entrega do mercado interno para a indústria estrangeira, destruindo empregos no Brasil. Este é o tamanho do problema que ele esconde quando joga com suas curvas animadas não se sabe por qual Deus.
Política Social
1.Mesmo sem ser perguntado sobre este tema, ele mesmo utilizou a oportunidade para falar que o BC tem uma grande agenda ações de política social. E aí falou sobre PIX, sobre normatização de cooperativas de crédito e do crédito a pequenas empresas que cresceu nos últimos anos, questões importantes, mas que não estão consideradas no cerne de uma política social. Quando falou do PIX, ilustrou com uma historinha de um menino vendendo “um produtinho” que o deixou ainda mais distante do conhecimento de uma ação social e que está lhe valendo uma reprimenda do Conselho de Direitos Humanos por entender sua admissibilidade do trabalho infantil. No escopo do BC, um viés social seria primar por políticas que estimulem o crescimento do PIB e do emprego. De fato, o que transpareceu foi um esforço inútil para falar de um tema que é caro ao atual governo.
2. Neste ponto também se inclui a narrativa sempre alardeada de que a atuação do BC para controlar a inflação é uma defesa dos mais pobres porque eles são os que mais sofrem com o processo inflacionário. Ora, quando a moeda perde seu poder aquisitivo quem mais perde é o detentor de estoque de moedas, i.e., muito dinheiro em aplicações financeiras ou debaixo do colchão. Há pobres nesta situação? Os pobres perdem quando a taxa de exploração aumenta com a recusa ou atraso na devida correção salarial periodicamente.
Uma entrevista esclarecedora sobre trajetórias do atraso que o Brasil passou nos últimos quatro anos.
*Doutor em Ciências Econômicas, articulista, Professor e Gestor Público.
Foto da Ilustração: montagem TV Cultura/SP