Por Erlon José Paschoal*
Em 2018, como em uma cena surpreendente de um filme de terror, o Brasil elegeu um ser execrável, truculento, racista, nefasto e idólatra de torturadores, milicianos e assassinos, como seu líder máximo, como presidente do país.
Como explicar essa vitória literalmente avassaladora da extrema direita em um país que se via como pacífico e hospitaleiro, depois de mais de uma década de implementação de políticas públicas inclusivas bem-sucedidas, interrompidas, é verdade, por um golpe torpe e infame.
Um tema complexo, mas que precisa ser devidamente analisado e entendido para que a luta pela democracia possa ser retomada mais profundamente e com vigor, no quinto maior país do mundo.
Pois bem, o Doutor em História Social e Economia Política Flávio Henrique Calheiros Casimiro assumiu esse desafio e deu uma significativa contribuição para o debate com a obra “A Tragédia e a Farsa – A Ascensão das Direitas no Brasil Contemporâneo”, lançada pela Fundação Rosa Luxemburgo.
O título do livro faz referência à famosa reflexão de Karl Marx em sua obra “18 de Brumário de Luis Bonaparte” na qual ele demonstra como a burguesia, mesmo constituindo a classe dominante no sistema capitalista, “nem sempre detém o domínio ou a hegemonia que gostaria, e, para tanto, alinha-se em torno de projetos autoritários e reacionários.” Nela, ao citar Hegel, Marx afirma que os grandes personagens da História Mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes: a primeira como tragédia e a segunda como farsa.
No nosso caso, enfim, tratou-se de uma tomada de poder pela extrema direita, primeiro por um golpe baixo e sujo, e depois pelo voto; uma vitória que se mostrou avassaladora, destrutiva e amplamente genocida, assumindo farsescamente como seu discurso principal a defesa pseudoconservadora da família, da pátria e da religião extremista e raivosa.
O autor tenta, a partir das consequências catastróficas dessas práticas agressivas e devastadoras, apontar com base em pesquisas exaustivas e detalhadas, alguns dos procedimentos que possibilitaram a produção de um certo consenso visando à aceitação do Mal como algo “nor-Mal”, e à consequente ascensão do projeto da extrema direita no Brasil, apoiado também por parceiros internacionais. E constata que, sobretudo, nos últimos vinte anos, a extrema direita foi se fazendo cada vez mais presente, através de uma rede de movimentos políticos, organizações culturais, instituições educacionais e meios midiáticos diversos, com destaque para as inúmeras ferramentas das redes sociais, e assim manipulando grande parte da opinião pública por meio da difusão massiva de notícias, mensagens, frases, fotos, vídeos, memes e, é claro, inverdades e fakenews.
E, como afirmou certa vez Pierre Bourdieu, esse “gota a gota simbólico” acabou provocando efeitos profundos e mobilizadores, como já é do conhecimento de todos.
Entre as milhares de organizações da sociedade civil existentes no país, o autor descreve algumas delas, talvez as principais nas últimas décadas, que atuam no sentido de articular setores diversos da sociedade e criar narrativas que tornem a assimilação das concepções da extrema direita algo palatável, moralizante e inovador, cujos sites, aliás, têm milhares de seguidores com milhões de visualizações.
Com esse intuito, o autor analisa a atuação, por exemplo, do Instituto Millenium, formado por intelectuais e empresários que pregam a economia de mercado, a privatização e limites austeros às ações do governos. O Instituto Liberal, uma espécie de aparelho de difusão ideológica da chamada “nova direita”. O Instituto von Mises Brasil, criado a partir da matriz austríaca do neoliberalismo. O Movimento Brasil Competitivo, formado por empresários e representantes da vida política neoliberal. O Lide - Grupo de Líderes Empresariais, articulado e dirigido por João Dória.
E vale citar também, entre outros, o FPA – Frente Parlamentar Agropecuária e o IPA – Instituto Pensar Agropecuária, apoiadores da bancada ruralista e do agronegócio.
O autor Flávio Henrique Calheiros Casimiro destaca que a maioria dessas instituições agem de maneira articulada, além de criarem e financiarem subgrupos de apoio, tais como o MBL, o RenovaBR e o Brasil Paralelo, ampliando assim as formas de assédio e de recrutamento de seguidores e de novos membros. Diga-se de passagem, um dos grandes gurus de tais grupos foi o filósofo adorado pelos milicianos bozonazis, Olavo de Carvalho.
Nas palavras do autor, “Essa burguesia emergente, performática e ansiosa por ocupar espaços de poder (...) aposta na estratégia mais conservadora e truculenta, articulada aos setores ruralistas e à parte da grande burguesia industrial, como alternativa de “mudança” das estruturas da sociedade política. Um dos exemplos desse segmento emergente e pragmático que oscila entre o conservadorismo e o reacionarismo, dentre as classes dominantes brasileiras – que assume o nexo do atual alinhamento das direitas brasileiras – pode ser exemplificado a partir dessa chamada burguesia varejista, representada por figuras como Flávio Rocha (Riachuelo), Luciano Hang (Havan), João Appolinário (Polishop), Salim Mattar (Localiza), Romeu Zema (Grupo Zema), e de forma ampliada, o próprio João Dória, que representa uma espécie de caricatura institucional com seu “clube dos milionários” da burguesia emergente.”
Um livro, enfim, que deveria ser lido por todos que pretendem entender melhor as dinâmicas de manipulação de narrativas e de realidades paralelas no Brasil de hoje, agora depois da vitória árdua e libertadora da democracia nas últimas eleições.
*Gestor Cultural, Diretor de Teatro, Dramaturgo, Professor e Tradutor de Alemão.