Por Guilherme Henrique Pereira*
Ao concluir a leitura de dois livros, não contive o impulso de fazer as notas abaixo, obviamente sem pretensão de resenhar, mas apenas com intenção de convidar leitores, especialmente aqueles do campo progressista, para os quais estes dois livros me parecem (hoje) imprescindíveis.
O crescimento da direita e extrema direita, agora mais evidente, tem levantado muitas perguntas sobre os elementos que estimulam este processo. E claro o que aconteceu com a esquerda que vem cedendo espaços nas mentes e corações de uma ampla parcela da população. Dois livros recentes se colocam, dentre outros, como leituras necessárias para todos que se preocupam com esse fenômeno.
O primeiro:
Título: Caminhos da esquerda: Elementos para uma reconstrução
Autor: Ruy Fausto.
Um rigoroso balanço crítico da experiência histórica da esquerda – e algumas propostas de reconstrução
Ebook, equivalente 190 páginas, artigo que deu origem ao livro Publicado na revista Piauí em Abril de 2015. O ebook traz em anexo os textos referentes ao debate ocorrido saiu em 2017. Na verdade o autor, em minha opinião, valorizou em excesso a tentativa de crítica de um articulista da ortodoxia liberal, com comentários aquela altura já amplamente superados e fora de interesse. Com isso, já estou adiantando que o meu convite para leitura é apenas do corpo do livro, deixando ao tempo e ao critério do leitor a opção para leitura dos apêndices.
O autor parte da constatação do crescimento da direita e extrema direita no mundo e já na introdução conclama para a união das esquerdas em todo o mundo; em paralelo já alerta que “a união só poderá vir com uma discussão profunda dos problemas no interior da esquerda.”
“É preciso partir de uma realidade brutal. Uma das tendências da esquerda nascida na Rússia, no início do século XX, e que se tornou mais ou menos hegemônica na esquerda mundial a partir da segunda ou terceira década do mesmo século, conduziu a resultado catastrófico. Ela nasceu de um partido autoritário que, depois de algumas peripécias, deu origem a um Estado totalitário....”. A herança deixada por esta experiência que consolidará um viés de totalitarismo na esquerda é o principal problema apontado por sua crítica que será exposta em detalhes e com argumentos que convencem ser este um dos grandes problemas que as esquerdas devem superar como condição para avançarem.
Um segundo grande problema é o reformismo ou melhor dizendo na atualidade, o adesismo. Lideranças que se colocavam na esquerda, no caso brasileiro, após a queda do muro de Berlin e a ascensão da nova onda liberal no mundo, parecem que começam a acreditar no fim da história e pleno domínio do capitalismo. Se juntarão a Fernando Henrique Cardoso para adesão ao ideário liberal, abandonando as teses antes defendidas.
Para o autor a terceira figura patológica é a que se designa pelo termo genérico de “populismo”. “Seus traços principais parecem ser uma liderança carismática autoritária, uma política que une, pelo menos na aparência, interesses de classes mais ou menos antagônicas, e certo laxismo na administração da riqueza pública.”
Sobre o descaso com a coisa pública o autor fará uma discussão analisando o que aconteceu com o PT deixando no ar a pergunta se valeu a pena a convivência com a corrupção para se manter no poder, ainda que realizando ações positivas como, por exemplo, a melhoria na distribuição de rendas.
Por óbvio, as propostas do autor para a esquerda é que tenha um projeto explicitamente antitotalitário e também antiautoritário. Em segundo lugar, que o seu projeto tem de ser estranho a todo adesismo em relação ao sistema. Além disso, é necessário que o programa incorpore a pauta da sustentabilidade. No plano da organização da produção assumir o estímulo a cooperação. Diretrizes que já eliminam qualquer possibilidade ou estratégia de convivência com o desrespeito a coisa pública, ou mesmo qualquer grau de corrupção.
Questões que foram expostas de forma contundente e tornam o livro de leitura e reflexão imprescindíveis.
O segundo:
Título: China – o socialismo do século xxI
Autores: Elias Jabour e Alberto Gabriele
Editora Boitempo, 2021
311 páginas.
De alguma maneira o cidadão, independente da nacionalidade ou profissão, foi em algum momento das últimas duas décadas, pelo menos, apresentado ou impactado pelas mudanças na geopolítica e na distribuição da produção mundial provocadas pelas transformações de várias dimensões em curso na China. Um contexto que estimula enorme curiosidade e, para alguns profissionais, também a necessidade de saber mais sobre China. Sem dúvida o tema mais frequente nas conversas na academia e na rua da atualidade.
Já ouvimos alguém dizendo que a China não é mais socialista, que a China se transformou em capitalismo de Estado, mas sabe-se que o Chinês politicamente engajado prefere que o país seja referido como “socialismo a moda Chinesa”. É o desafio de ir além das proposições fáceis que os autores enfrentam neste trabalho. A partir de suas análises minuciosas, tanto no plano teórico como nas descrições no plano concreto, os autores assumem com notória coragem intelectual que ...”A China e o “socialismo de mercado” deveriam ser tratados como uma formação econômico-social nova, distinta.”
Na medida que a leitura avança a nossa curiosidade vai se esvaziando, dado o empenho bem sucedido dos autores mostrando como a China caminha na superação dos modelos de organização real de sociedades socialistas que por razões diversas fracassaram durante o século XX, nos termos que foram definidos, porém deixando um legado rico de experiências e conhecimento que permite pensar novos formatos e modelos de sociedades e modos de produção.
O livro foi organizado em duas partes bem definidas. Na primeira parte, propõem um desafio ....”ao pensamento neoclássico com uma reinterpretação de três conceitos basilares do marxismo, a saber, o modo de produção, a formação econômico-social e a lei de valor.” Para introduzir esta discussão utilizam duas “categorias operacionais”: socialisticidade e orientação socialista. O primeiro se refere ao adjetivo “socialístico” que “significa estar de acordo com o socialismo, ser socialista.” Já a segunda categoria, refere-se a economias nacionais sob direção de forças políticas que visam estabelecer, manter, fortalecer ou melhorar um sistema socioeconômico socialista e que podem de fato serem consideradas socialistas em alguma dimensão mensurável. Está presente a ideia de que pode-se falar em grau ou estágio em que se encontra, em dado período histórico, quanto a amplitude e maturidade das características definidoras do socialismo.
Em seguida introduzem o conceito de “formação econômica e Social” (FES) que poderá seguir o caminho do capitalismo ou conviver com diferentes modos de produção, incorporando em diferentes graus as características de produção, distribuição da riqueza e propriedade dos meios de produção típicas do ideário socialista. Situações em que será possível falar em formação econômicosocial de orientação socialista.
Passam pela análise crítica dos princípios do individualismo da racionalidade do homem econômico, princípios fundadores da análise neoclássica, e pelo princípio da cooperação intrínseco ao socialismo. E concluem que é impositiva uma “mudança de ênfase do egoísmo para a cooperação, do hedonismo individual de curto prazo para governo racional coletivo de longo prazo da vida social, da regulamentação descentralizada do mercado para o planejamento centralizado.”
Retomam em seguida o conceito de modo de produção em Marx, passando pelas diferentes leituras para concluírem sobre a possibilidade de convivência de diferentes modo de produção em um mesmo sistema nacional. Na mesma trajetória propõem um releitura do que é trabalho improdutivo e da lei de valor quanto a amplitude de sua aplicação em distintas FES. Lei do valor, na definição operacional dos autores, “refere-se a lei básica do movimento que garante e restringe, na prática e de maneira lógica, a formação de preços, salários e taxas de lucro e a geração de excedentes....e a reprodução simples e ampliada do modo de produção. A lei de valor caracteriza qualquer forma de produção de mercadorias que gira em torno de relações monetárias de produção e troca – essencialmente o capitalismo e o socialismo.”
Com base neste novo conjunto de reinterpretações conceituais, conseguem demonstrar a possibilidade de existências de inúmeras combinações de modos de produção em um mesmo sistema nacional, embora haja um prevalente que poderá definir o grau de orientação socialista. E, ao final, sustentarem que a China evoluiu para um sistema superior e particular de sociedade capitalista.
Argumentos convincentes, mas os prórprios autores registraram que estão conscientes do campo para polêmicas que descortinaram.
Na segunda parte o livro se concentra em descrever o que vem acontecendo no mundo real de alguns países, mas especialmente na China. Descreve o desempenho espetacular da economia chinesa no período 1980/2019, bem como as muitas reformas e transformações institucionais implementadas.
As reformas iniciadas em 1978 começa pelo campo com o objetivo de aumentar a produção de alimentos, mudando o “..núcleo da organização empresarial passou da comuna rural para a unidade familiar... com a criação de um mercado local de excedentes agrícolas, o que gerou aumento significativo na produtividade do trabalho...”. Essas novas formas organizativas dão origem as “empresas não capitalistas orientadas para o mercado”(Encom) e suas variantes Township and Village Enterprises (TVEs).
Vieram os “Grandes Conglomerados Empresariais Estatais (GCEE) e focalização dos bancos para o financiamento do desenvolvimento, definindo características únicas no mundo para o sistema chinês, no qual as GCEE estão localizadas no núcleo produtivo, enorme capacidade de coordenação do investimento e atuam em favor de uma estratégia global envolvendo trilhões de dólares.
A presença forte da China no cenário da geopolítica mundial e a eliminação da pobreza ficaram indicados como principais resultados alcançados pelas transformações institucionais e forte intervenção de estratégias e políticas de governo, configurando um novo perfil do sistema produtivo: 60% propriedade de Governo, 30% privado e 10% das empresas estrangeiras.
Fechando esta notas, com o objetivo de convidar para a leitura, vale citar ainda a mensagem mais geral percebida na leitura: a importância do planejamento e das novas formas de cooperação para a produção, sem prescindir da mediação dos mercados, as novas formas institucionais de organização com o mix de empresas privadas, públicas e cooperativa. Formatos que os autores denominarão de nova economia do projetamento cuja emergência ocorre na China e que tendem ser a evolução de sociedades de socialismo orientado, embora cada uma delas com dinâmicas, histórias e características que lhes serão próprias, posto que modelos de formação econômica/social não são reaplicáveis.
* Professor Universitário; Doutor em Ciências Econômicas.
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