Por Ailse Therezinha Cypreste Romanelli*
Abro o jornal e o texto me surpreende. Pais e alunos reclamam do currículo esdrúxulo do tal Novo Ensino Médio. Mundo Pets SA ou Arte de Morar ou O que rola por aí seriam algumas das disciplinas desse tão falado novo currículo. Assustador! Seria fake? Parece que não pois a matéria inclui um pronunciamento, até sensato, do Ministro da Educação.
Desde que o mundo é mundo, as crianças vão à escola para aprender a ler, escrever e contar. A princípio só os meninos. Muito depois, as meninas também. Terminada essa etapa, quem precisava trabalhar, procurava um ofício – moleiro, ferreiro, arador, carpinteiro; quem não tinha amo ou dono, ou não precisasse trabalhar para comer, podia se dar ao luxo de frequentar grupos de estudo com os filósofos da moda. Mulheres, como sempre, fora do processo.
O modelo atravessou os mil anos de Idade Média passou pelos Colégios e Universidades e encalhou na Revolução Industrial. Os escravos passaram a operários assalariados formando uma classe subalterna, considerada por Augusto Comte como pouco inteligente. Tempos de forte controle social quando era humilhante trocar trabalho por dinheiro.
Lá pras tantas, enriquecidos com o comercio e surfando na crista da onda os burgueses precisavam adquirir cultura geral para fazer figura nos salões. Fazia–se necessário um tipo de escola que se ajustasse perfeitamente à situação.
Então, nos anos vinte, Mussolini convidou para Ministro da Educação, um famoso professor da Universidade de Roma, o filósofo Giovanni Gentile.
Gentile planejou um sistema educacional bem adequado aos novos tempos. No melhor estilo fascista, não tinha por objetivo uma escolarização universal. Diz ele: não deve haver lugar para todos. O excesso numérico de crianças pode mecanizar a educação, levando a escola a gradativamente se rebaixar ao nível da multidão. (MANACORDA, 1989) .
O currículo, assim idealizado, fez sucesso: para as classes privilegiadas, os tradicionais estudos humanísticos; para as classes subalternas, estudos limitados a aprendizados profissionais especializados. A escola deveria ir ao encontro do povo, pois todo excesso de ensinamentos literários, históricos, geográficos, e científicos, destinavam-se à elite. (MANACORDA, 1989).Ou seja, um currículo chique para os ricos e um curso simples, profissional, para o povo.
Gramsci bem que reclamou, denunciando a discriminação e exigindo estudos humanísticos também para os pobres. No auge do fascismo, foi preso; Gentile defenestrado. A Itália entrou na guerra e, em 1942, Getúlio Vargas importou o sistema para reorganizar a educação secundária no Brasil.
Constava de dois ciclos: Ginasial e Colegial este último subdividido em Clássico e Científico (Lei federal nº 4.244 de 09 de abril de 1942)
Apenas por curiosidade, cito as disciplinas dos três anos do curso Colegial: Português/ Literatura Brasileira e Portuguesa, Matemática, Geografia Geral, Geografia do Brasil, Geografia Econômica, História Geral e História do Brasil, Francês, Inglês, Espanhol, Latim e Grego, Física, Química e História Natural, compreendendo Mineralogia, Botânica e Zoologia, Filosofia, Desenho, Educação Física, Educação Militar, Educação Religiosa e Educação Moral e Cívica.
Ninguém percebeu a discriminação que contaminou até a Constituição Federal. Vejam a Constituição Brasileira de 1937 e o que diz seu Art. 129: O ensino pré-vocacional profissional destinado às classes menos favorecidas é, em matéria de educação, o primeiro dever do Estado. (grifo nosso).
Beleza, não?! Curso humanista para os ricos e formação profissional para os pobres aqui, também
O objetivo primordial desse sistema era a seleção das melhores cabeças; como garantia de futuros governantes esclarecidos, as tais individualidades condutoras, líderes dotados da consciência patriótica de que falava a lei. E tome provas!
As estatísticas eram estarrecedoras: de cada 100 alunos que entravam na primeira série ginasial apenas 16 concluíam o curso. 80 % ficavam pelo caminho. Mas todos achavam perfeitamente normal, pois este era o objetivo da escola: selecionar as pessoas. Nascia o mantra: escola boa é a escola que reprova
Este sistema funcionou durante a toda a ditadura Vargas.
Em 1945 a Segunda Guerra acabou. Em 1948 a ONU editou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a educação, no mundo, alterou seus princípios. O Art.26 é explícito: Todo ser humano tem direito à educação. A Instrução Elementar será Gratuita e Obrigatória e a Educação Profissional deve ser acessível a todos, bem como a Instrução Superior, esta baseada no mérito.
A Itália e a Europa seguiram novos rumos mas nós seguimos com a sucata. A escola deixou de ser uma selecionadora de pessoas. O ensino foi reformulado com a eliminação do sistema de reprovação. Mas aqui nada mudou.
Assim que Getúlio foi deposto, um grupo de educadores logo se reuniu para empreender uma reforma caprichada no sistema educacional. Entretanto, como os brasileiros não se importam com Educação e Ciência, o projeto de lei rolou no Congresso por longos dezesseis anos; a famosa Lei de Diretrizes e Bases só foi sancionada em 1961.
Nessa lei, o art. 46, regulamentado por uma Indicação do então Conselho Federal de Educação, dispõe sobre o Ensino Médio. Ele deveria ser reorganizado em quatro áreas distintas: Letras, Ciências Sociais, Ciências Exatas e Ciências Biológicas, exatamente como proposto hoje.
Na primeira e na segunda série haveria, no máximo, oito disciplinas obrigatórias e duas optativas. (a serem escolhidas entre quinze áreas Psicologia, Filosofia/Lógica, Economia, Línguas, etc) No terceiro ano o aluno estudaria apenas as disciplinas exigidas no Vestibular específico do curso superior que escolhesse. O Ensino Técnico (Art. 47), foi regulamentado separadamente.
Embora constasse da Lei de Diretrizes e Bases, este Ensino Médio nunca foi implantado. Faltou vontade política; faltou dinheiro, faltaram instalações adequadas. faltou professor. A opinião pública reagiu: a escola enfraqueceu. Os meninos não vão aprender nada. Por sua vez a opinião publica, pais e professores, não foram preparados para as novidades da nova legislação. O espírito da velha lei de 1942 foi mais forte. O formato e as exigências dos antigos cursos Clássico e Científico permaneceriam até 1971 quando foi promulgada a mal amada Lei 5.692/71.
Quanto aos diretos humanos, em um certo treinamento de professores, até tentei trabalhar seus princípios mas os Técnicos da Secretaria de Educação rebarbaram o assunto, e avaliaram mal meu desempenho porque perdi tempo com conteúdo inútil. Para quê falar de Direitos humanos num cursos de formação para professores? O refrão se mantém: escola boa é escola que reprova. E a Educação Profissional, desacreditada foi rejeitada. Quem é que vai querer fazer curso de pobre?!.
Hoje a Medida Provisória 746/16 tenta-se reeditar o Art.46 da Lei de 1961. Como no passado, o Ensino Médio foi subdividido em várias modalidades, agora incluindo Educação Profissional. Entretanto, depois de sessenta anos de seletividade, nossos pedagogos perderam o rumo da Ciência e da Tecnologia. Direitos Humanos só para casos de tortura; ninguém percebe o sentido do Art. 26.
Em vez de ficar choramingando a falta da Filosofia e da Sociologia (que nunca esteve no Ensino Médio; era específica do curso de Magistério) por que não ensinar Ética? Ou Lógica? em vez de O que rola por aí?
Será possível que nossos bolsistas no exterior, nunca prestaram atenção na organização da Educação Secundária nos países por onde andaram? Será que nossos Mestres e Doutores, em suas respectivas Universidades, não têm acesso a revistas estrangeiras especializadas em Educação? Ou não interessa?
Talvez não queiram saber o que faz o mundo civilizado; talvez queiram idealizar algo diferente; inventar a roda, quem sabe?!
Se é para continuar atrasado, por que não recorrer às Indicações do Conselho Federal de Educação ao Art. 46 da LDB, 1962? Elas podem ser facilmente encontradas na internet ou nas publicações especializadas do Ministério da Educação. Atrasados duzentos anos, mas melhor do que Brigadeiro Caseiro.
Francamente, um país que nunca saiu do nível 1 nas provas do PISA, onde as pesquisas apontam 80% de analfabetismo funcional entre os graduados, incluir no currículo do Ensino Médio a disciplina Mundo Pets SA... é, no mínimo, falta de consideração com nossos jovens.
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* Mestra em Avaliação de Sistemas Educacionais e
Membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras
Cadeira nº 25