Fabrício Augusto de Oliveira
O dia 08 de janeiro deve entrar para a história do Brasil como o dia em que, pela primeira vez, cerca de 4 mil vândalos radicais da extrema direita, de uma população total de mais de 200 milhões, invadiram a capital federal, localizada em Brasília e depredaram insanamente as sedes e dependências das instituições da República, o Palácio do Poder Executivo, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, visando perpetrar um golpe contra os poderes constituídos. Seu objetivo foi o de instaurar o caos e o pânico político no país, com a expectativa de que, com a desordem criada, as forças armadas ouvissem seus apelos, colocassem as tropas nas ruas e sacramentassem o golpe, destronando o governo que havia sido legitimamente eleito para governar o país no período de 2023-2026, acusado de, além de corrupto, ser partidário do comunismo. Em seu lugar, pretendia reempossar o ex-presidente que acabara de terminar o seu mandato, Jair Bolsonaro, afinado com a ideologia fascista, que havia dado no pé para os Estados Unidos, temendo ser preso. Não deu certo.
Foi um movimento que começou a ser orquestrado e organizado assim que as urnas deram o resultado das eleições e contou não somente com o incentivo e apoio do ex-presidente, mas também de forças simpáticas à sua ideologia nos meios empresariais, intelectuais, artísticos, governamentais, de parte da mídia reacionária e até mesmo de expressivas parcelas das forças armadas, especialmente dos militares que se encontravam na reserva, cujos membros haviam sido cooptados pelo governo com cargos importantes e polpudos salários. A interação dessas distintas forças para pôr abaixo os pilares da democracia e instaurar um regime autoritário alimentou a esperança dos 4 mil depredadores de que só dependeria de sua ação inicial para que o golpe tivesse êxito. Exageraram, no entanto, nessas ações e assistiram à reação inesperada do Congresso, do Judiciário e de vários segmentos da população, enquanto as forças armadas recuaram em seus propósitos de continuar apoiando essa sandice diante dessa reação.
O papel das forças armadas neste processo merece destaque. Desde o fim das eleições permitiu passivamente a instalação em seus territórios, em todo o país, de acampamentos que abrigaram elementos da população descontentes com os seus resultados, de onde nasciam ações de contestações do novo governo e atos terroristas voltados para a criação do caos de forma a viabilizar o golpe. Seus comandantes impediram, também, desde que a sua organização passou a ser insistentemente veiculadas nas redes sociais, a desmontagem e o esvaziamento destes acampamentos, sob o falso argumento de que deviam respeito à “liberdade de expressão” e de “livre manifestação” (sic) dos cidadãos. Um engodo.
Da mesma forma, as autoridades públicas responsáveis pela segurança da capital federal seguiram o mesmo caminho, protegendo a horda dos golpistas. Mesmo tendo sido previamente notificada do movimento com alguns dias de antecedência, não se preparou adequadamente para impedir sua marcha em direção à sede dos poderes constituídos e fez, com raras exceções, vista grossa para a quebradeira generalizada de suas dependências, com alguns de seus membros não só estimulando-a, mas dela também participando. Um caos.
Apesar da aliança que se formou entre empresários bolsonaristas, segmentos das forças armadas em especial, mas não somente, da reserva, líderes e membros do governo entrincheirados em altos cargos públicos, parte dos membros do Congresso e também do Judiciário, que estimularam e manipularam, como bois de piranha, os 4 mil vândalos que aterrorizaram Brasília e o Brasil no dia 08 de janeiro, o golpe fracassou. O fato é que a aliança formada para este objetivo não era tão ampla como se acreditava e nem contava com o apoio interno da maioria da população, nem com o apoio externo das nações democráticas para viabilizar-se. Por isso, a democracia conseguiu sair vitoriosa, mas apenas depois de correr sérios riscos.
O fato é que Bolsonaro se empenhou, durante os quatro anos de seu mandato, em desacreditar a democracia e o processo eleitoral, semeando, junto a uma massa de eleitores descrentes com as suas promessas e de setores da sociedade cooptados com cargos no governo e consideráveis mordomias, frutos para a implantação de um regime autoritário, vendido como necessário para pôr cobro à corrupção das elites, aos degenerados membros do movimento LGBQUIA+, aos demoníacos partidos de esquerda, necessário para sua redenção e para o reencontro com os valores de Deus, da família e da pátria, bandeiras típicas do fascismo. Felizmente não deu certo dessa vez. Mas, mesmo derrotados, seus correligionários continuam mantendo, cegamente, seu apoio à proposta antidemocrática que os embalou, descortinando maiores dificuldades para a sustentação da democracia no país.
A cooptação das Forças Armadas para o seu projeto ocorreu por meio de alguns expedientes, revelando sua fraqueza em conviver com regimes democráticos. O primeiro, embora não por ordem de importância, com a militarização do governo, ao destinar inúmeros cargos em vários níveis de hierarquia para os seus membros, tanto da reserva como da ativa, bem remunerados com a autorização, por decreto, de que poderiam ultrapassar o teto salarial previsto em lei para os servidores públicos, recebendo, assim, das duas fontes. O segundo, com a promessa de melhorias salariais e vantagens trabalhistas para os membros pertencentes, de alguma forma, às forças de segurança, seja da polícia federal, da polícia rodoviária federal, das polícias militares, juntamente com a indicação, para seu comando, dos que eram afinados com a sua ideologia e dispostos a apoiar o golpe. Como resultado, nos meios militares o apoio a Bolsonaro nas eleições parece ter atingido, segundo dados divulgados na imprensa, o percentual expressivo de 95% de seu total. Em terceiro, por fazer uma campanha insistente, que encontrou ressonância nos meios militares, à medida que lhe interessava, de que as Forças Armadas representavam o Poder Moderador (leia-se o Quarto Poder) da República, numa leitura viesada do art. 142 da Constituição Federal de 1988, com autonomia, portanto, para intervir na ordem estabelecida, se convocada pelo presidente da República, para restaurar a ordem em caso de desrespeito às decisões do Executivo pelos demais poderes e do caos social e político resultante deste enredo. Tudo muito conveniente para ambos os lados, do presidente e das Forças Armadas, que passaram a acreditar dispor de um poder maior do que o previsto na Constituição.
Este episódio, que praticamente seguiu o mesmo script de Donald Trump nos Estados Unidos, quando perdeu as eleições presidenciais para Joe Biden, em 06 de janeiro de 2021, e incentivou a invasão do Capitólio para impedir sua posse e retomar o poder, revela as fraquezas das redes de proteção da democracia às ameaças golpistas da extrema direita, que se vale de suas próprias regras para se eleger e, depois, para, no poder, entronizar seus apoiadores nos aparelhos e instituições do Estado, mudar essas regras e preparar o terreno para perpetuar-se no poder, exatamente como também aconteceu no governo Bolsonaro. Sem a revisão e o fortalecimento dessa rede de proteção da democracia, pode-se esperar que outros virão, como tem acontecido em várias partes do mundo.
*Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social e do Grupo de Estudos de Conjuntura do Departamento de Economia da UFES, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros do livro “A Economia Política Clássica: a construção da economia como ciência”, de 2023.
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