Guilherme Narciso de Lacerda*
A concessão da BR 101 no trecho que corta o ES foi feita em 2012 e fazia parte do Plano de Concessões Rodoviárias de 2011. A assinatura do contrato ocorreu em maio de 2013, já com atraso no cronograma em função de questionamentos judiciais por ocasião da licitação. Dez anos depois, em julho de 2022, a concessionária ECO101 fez solicitação de devolução da concessão, valendo-se de uma alternativa legal de 2017. Em dezembro de 2022 a ANTT tornou pública a admissão de atender ao pleito da concessionária.
As justificativas da empresa para a devolução, nos próprios termos do comunicado, estavam vinculados aos seguintes fatos: "a complexidade do contrato, marcado por fatores como dificuldades para obtenção do licenciamento ambiental e financiamentos; demora nos processos de desapropriações e desocupações; decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) de alterar o contrato de concessão; não pedagiamento da BR-116; não conclusão do Contorno do Mestre Álvaro e o agravamento do cenário econômico, tornaram a continuidade do contrato inviável".
A manifestação empresarial tal como está colocada não pode ser aceita. Não é recomendável comprá-la pelo valor de face, utilizando-se de um jargão que o mundo corporativo melhor entende. A companhia ECORODOVIAS é hoje a maior concessionária rodoviária do Brasil, administrando mais de 4.000 kms de rodovias e ela sabe muito bem o grau de complexidade de tais contratos e as obrigações que possui em termos de licenciamento de obras, desapropriações e financiamento. O argumento sobejamente difundido para a sociedade de que a causa maior do atraso nas obras de duplicação eram a restrição ambiental para atravessar duas reservas naturais no trecho norte do estado só fazem sentido para os próprios subtrechos e não para a rodovia como um todo.
Por sua vez, as penalidades impostas à empresa pelos atrasos na entrega dos investimentos e a decisão do TCU de exigir um reequilíbrio econômico-financeiro não poderiam ser aceitos como motivação para a devolução da concessão. Uma concessionária explora o ativo por um tempo cobrando o pedágio que estava no contrato, faz menos de 20% do que deveria fazer e depois reage às decisões tomadas pelo órgão fiscalizador e pelo poder concedente entregando a concessão? E ainda exige compensações financeiras em valores que assustam pela grandeza e pela nebulosidade em torno dos argumentos em que se apoiam.
É curioso que a mesma empresa que devolve uma concessão em que comprovadamente não cumpriu suas obrigações participou e venceu a licitação da BR 116 no trecho Rio/Governador Valadares, exatamente a rodovia que a própria ECO101 ressaltou no seu comunicado como sendo uma das causas da sua devolução. E tanto uma decisão quanto a outra ocorreram simultaneamente, em meados de 2022.
Além disso, a empresa ressalta o atraso na obra pública do contorno do Mestre Álvaro e a queda no número do tráfego de veículos por razões conjunturais. Os argumentos colocados são passíveis de serem avaliados. É possível que haja justificativas parciais para determinadas situações. Em outros pontos, pode ser que o poder concedente demonstre que a concessionária de fato incorreu em descumprimentos legais. Essas situações poderiam ser enfrentadas e resolvidas por meio de negociações. O próprio Contrato tem as alternativas para a resolução de conflitos, inclusive por meio de uma Câmara de Arbitragem.
Mas a empresa optou pela devolução. É uma alternativa legal, mas precisa atender a uma série de pré-requisitos. Não basta o parceiro privado decidir unilateralmente.
A decisão da companhia foi péssima para o Espírito Santo. Ela trouxe um enorme desafio para o governo e a sociedade. Desde meados do ano passado a questão está colocada sem ter até agora clareza sobre qual a alternativa que menos penaliza o Estado.
O governo estadual decidiu atuar proativamente e anunciou a disposição de destinar até R$1 bilhão para obras e manutenção da rodovia. Esta postura é rigorosamente correta diante da singularidade do tema. Ela reverte a passividade que o próprio governo estadual demonstrou até então no trato do assunto, desde o início da concessão.
Há muitas questões sem esclarecimentos em torno do acontecimento. Aliás, esta é uma marca da concessão desde a sua constituição. As limitadas informações disponíveis à sociedade é um problema de primeira grandeza que deveria ser enfrentada de imediato, tanto pelos órgãos federais diretamente envolvidos na busca de uma solução quanto pelo governo estadual. Após a operação policial de 2019 por suspeitas de irregularidades na concessão a empresa deveria ter tido maior empenho em aprofundar a interlocução com os usuários e com a sociedade como um todo.
Pelo que se sabe, parece que todas as alternativas até agora aventadas levam a prazos longos que penalizarão fortemente a economia capixaba.
Diante de tal imbróglio ofereço algumas reflexões a serem consideradas. Haverá reações sob o argumento de que elas não possuem base legal. Ora, é exatamente esse o ponto a ser enfrentado. A devolução desta concessão não é a única no Brasil e há vários casos pendentes de solução. Daí a necessidade de se pensar além do que se tem hoje.
Não se pode olvidar que a incômoda situação atual em várias concessões rodoviárias é fruto da desídia do governo federal nos últimos seis anos ao não atuar preventivamente na busca de soluções negociadas. O modelo vigente de se conceder, entregar o ativo público e depois apenas exigir relatórios periódicos para avaliar desempenho não mais funciona. Vale ressaltar que as divergências entre a concessionária e o TCU estão relacionadas a uma manifestação deste órgão sobre os cinco primeiros anos da concessão apenas. Nos anos seguintes, os descumprimentos contratuais se aprofundaram e eles ainda nem foram avaliados.
Além disso, é preciso incluir na mesa de negociações o fato de que a empresa possui várias concessões. Cada concessão é autônoma e corresponde a uma SPE-Sociedade de Propósito Específico, mas a controladora societária é uma só e tal situação não poderia ser desconsiderada quando se ofereceu a oportunidade de uma nova licitação federal. Faz sentido que uma empresa que solicita a rescisão antecipada de uma rodovia assuma uma nova concessão em uma rodovia em parte concorrente da outra? A solução apresentada em 2012 pela concessionária para a BR 101 ES/BA previa uma TIR de 10,47%. Dez anos depois, a mesma empresa participa de outra licitação – a da BR 116 Rio/Minas - que teve como referência uma TIR de 8,47%. É obvio que os cálculos de uma e de outra se deram em tempos distintos e cada plano de negócio tem suas peculiaridades, mas as duas dimensões precisam ser trazidas ao debate. Enfim, o núcleo do governo federal executor das políticas de infraestrutura não poderia ter assistido passivamente ao aprofundamento do litígio em torno da BR101 ES/BA como ocorreu.
O Poder Público pode (e tem o dever de) rever os seus atos, a qualquer tempo. As obrigações da concessionária precisam ser realçadas na mesa de negociação e, se for o caso, rever a aceitação da devolução.
A decisão de se fazer novos estudos para sustentar uma relicitação parece não ser apropriada; ela apenas irá postergar uma solução. O trecho com todo o seu detalhamento técnico já é de conhecimento minucioso da agência reguladora e do TCU. O melhor seria reescrever o próprio contrato, ajustando posições para um novo equilíbrio e a partir daí ajustar a manutenção do próprio concessionário ou abrir a possibilidade de uma transferência da concessão. Uma alternativa não pode deixar de lado o governo estadual. Uma negociação tripartite entre concessionária atual, poder concedente e o poder público estadual deveria partir de algumas premissas, tais como: a) revisão da decisão de se aceitar a devolução da concessão, nos termos permitidos pelo Decreto 9.957/2019 e da Lei 13.448/2017; b) revisão do programa de investimentos, com a inclusão de recursos públicos; b) repactuação da lista de obrigações do concessionário atual associando-a à admissão de responsabilidades administrativas e financeiras; c) revisão de possibilidades na condução negocial para reescrever o contrato de concessão comum recolocando-o como uma concessão administrativa (PPP); d) exclusão das pendências negociais/financeiras da gestão futura da concessão por um determinado tempo, prazo em que será buscada uma solução definitiva para a continuidade da concessão; e) fortalecimento da presença de representação dos usuários nas negociações e na fiscalização do contrato.
É óbvio que tais propostas não são simples de serem desenhadas. Mas a oportunidade não pode ser perdida. A constituição de uma instância de negociação no TCU pode ajudar nessa solução negociada. O caso da BR 101 ES/BA não é o único; há outros que estão pendentes de solução. Pensar além do que está posto é o desafio.
(*) Guilherme Narciso Lacerda, doutor em Economia pela Unicamp, mestre em Economia pelo IPE-USP, professor do Departamento de Economia da UFES. Foi Presidente da FUNCEF (2003-20010) e Diretor do BNDES (2012-2015). Autor do livro “Devagar é que não se vai longe – PPPs e Desenvolvimento Econômico”, publicado pela Editora LetraCapital (2020).
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