Por Fabrício Augusto de Oliveira*
Aprovada em dois turnos na Câmara dos Deputados, a proposta de reforma tributária do governo tem sido vendida para a população como capaz de abrir as portas do paraíso para a economia e a sociedade brasileira. Com ela, de acordo com essa visão altamente otimista, não somente seriam corrigidos os principais problemas do sistema tributário brasileiro, como os de sua complexidade, cumulatividade dos impostos, injustiça fiscal, distorções federativas, como seriam destravadas as trancas do crescimento econômico, propiciando ao país, uma expansão anual adicional do PIB de algo em torno de 0,8% a 1,3% ao longo dos próximos quinze anos. Com a vantagem de tudo isso ser alcançado sem a necessidade de elevar a atual carga tributária.
Bom demais para ser verdade. No entanto, tanto a Câmara dos Deputados, que garantiu sua aprovação em 2º turno com 378 votos, como os governadores dos estados, em sua maioria, os empresários e a mídia, em geral, assim como alguns economistas de renome, têm apoiado a proposta, apontando-a, à semelhança do governo, como a alternativa que resta ao país de retomar a trajetória do crescimento econômico, pavimentando-o com mais justiça fiscal. Não é nenhum exagero dizer que a mesma ganhou praticamente unanimidade nacional. A rigor, contudo, pode-se dizer que a proposta não garante nem uma nem outra coisa, embora possa contribuir para melhorar a competitividade da economia brasileira, ao substituir alguns impostos cumulativos por um imposto incidente sobre o valor agregado, um IVA. Mas nada além disso, a não ser ao nível de promessas.
O fato é que a proposta de reforma da tributação, que continua em tramitação, foi elaborada à luz do princípio da competitividade, ou seja, da eficiência econômica, restringindo-se à reforma do consumo, com os seguintes objetivos: i) simplificar o sistema, tornando-o menos complexo, com a extinção de alguns impostos cumulativos e a criação de um IVA dual, ou seja, de um IVA federal e outro de competência dos estados e municípios; ii) remover, como resultado dessas mudanças, algumas de suas imperfeições que prejudicam a economia por reduzir o poder de concorrência das empresas nacionais tanto no mercado interno como no externo. Embora desejável e importante, tal mudança não é capaz, por si, de garantir uma trajetória de crescimento mais sustentável para a economia brasileira e menos ainda de reduzir a sua regressividade, melhorando a distribuição do ônus tributário entre os membros da sociedade. Explica-se a razão.
Abstraindo do fato de que as projeções do crescimento em que se apoia o governo só poderão ser confirmadas ou não a partir de 2033, ano em que se prevê a implantação plena do principal imposto criado com a reforma, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), ou seja, daqui a dez anos, não se pode esquecer que o baixo crescimento em que a economia brasileira mergulhou nos últimos 40 anos, ou seja, desde a década de 1980, deve-se não apenas ao seu sistema tributário, mas a um conjunto de fatores, como os do atraso tecnológico, infraestrutura econômica precária, mão de obra desqualificada, políticas macroeconômicas inconsistentes, fortes desequilíbrios fiscais, insegurança jurídica dos programas de privatização etc., que afastam os investimentos e minam as forças do crescimento. Se estes fatores perdurarem, e não há nenhum plano de desenvolvimento consistente para corrigi-los, embora se possa obter algum ganho com a reforma, dificilmente haveria quem, a não ser no nível do discurso, se arriscaria a fazer alguma aposta em um crescimento de tal magnitude.
Por outro lado, a economia mundial, submetida a severos ajustes desde a crise do subprime de 2008 e da crise da dívida soberana europeia, não dá mostras de voltar a crescer com maior ímpeto tão cedo, um quadro agravado pela pandemia da Covid-19 e pela guerra Rússia-Ucrânia, que desarticularam as cadeias produtivas globais e nela introduziram o fenômeno inflacionário que tem exigido a manutenção de taxas elevadas de juros antinômicas do crescimento econômico. Com os Estados Unidos e a União Europeia ameaçadas de ingressar num período recessivo e a China sendo obrigada a redirecionar seu padrão de crescimento para o consumo em detrimento dos investimentos, a era de elevadas e robustas taxas de crescimento de 10% ao ano parecem ter ficado para trás, prenunciando problemas para a economia mundial e mais ainda para as economias emergentes dependentes de exportações de commodities.
Com a promessa de que a reforma da renda e do patrimônio será feita após a reforma do consumo, o governo antecipou, na proposta, algumas medidas cosméticas para diminuir a regressividade da tributação, caso da cobrança do IPVA sobre embarcações e jatinhos de luxo, e propôs a instituição de um cashback para os produtos consumidos pelas camadas de menor renda. Contudo, alterações de última hora feitas na proposta pela Câmara dos Deputados, estabeleceram a alíquota de 0% (zero) para a cesta básica, significando que também os contribuintes mais ricos se beneficiarão dessa isenção, o que enfraqueceu o objetivo de reduzir sua regressividade.
Sabe-se que, atualmente, uma das principais travas do crescimento econômico reside na profunda e crescente desigualdade da renda, que tem aumentado no mundo desde a década de 1970, quando as ideias neoliberais passaram a tornar-se dominantes, provocando um progressivo enfraquecimento da demanda por bens e serviços, especialmente da população de mais baixa renda e, consequentemente, do crescimento econômico. Por isso, tem se formado o consenso de que sem mudanças importantes nos sistemas tributários que reduzam os impostos sobre o consumo e incluam os mais ricos no ônus da tributação, promovendo-se uma redistribuição da renda e da riqueza, essa equação não tem como ser modificada, com o sistema capitalista podendo estar caminhando para o colapso.
A promessa do governo de que essa questão será enfrentada mais à frente não desperta confiança, por várias razões: i) a reforma do consumo, uma vez aprovada no Senado Federal e sancionada pelo presidente da República, demandará a atenção do Congresso para sua regulamentação, por meio da legislação infraconstitucional, ao longo de todo o ano de 2024; ii) são notórias as resistências do Congresso na votação de matérias que taxem os ricos e o capital, sendo muito difícil a aprovação de duas reformas deste tema em um mesmo mandato presidencial; iii) as resistências à aprovação da cobrança de impostos dos offshores e dos fundos exclusivos de investimentos, medidas que têm sido defendidas pelo governo mais para aumentar a arrecadação e cumprir os compromissos assumidos com o novo marco fiscal do que para promover justiça fiscal, constituem provadas dessas dificuldades; iv) a partir do terceiro ano do mandato presidencial acende-se a luz da reeleição e, neste caso, dificilmente propostas que desagradem setores relevantes da sociedade tendem a ser apresentadas ou a prosperar no meio político. A verdade é que a reforma pode tornar o sistema tributário ainda mais regressivo caso a carga tributária aumente, como têm apontado pesquisas da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Também grave, embora não contemplado na reforma, o já frágil arranjo federativo existente no país, pode acabar de naufragar. Desde a década de 1990, mudanças de vários aspectos deste arranjo têm reduzido a autonomia dos estados e municípios, transferindo para o Poder Central as decisões sobre suas políticas tributária, de gastos e de endividamento, asfixiando financeiramente principalmente os estados, que já tiveram uma participação de 38% do bolo tributário na década de 1960, hoje reduzida a algo em torno de 25%.
Considerado na reforma a maior novidade para diminuir e administrar os conflitos federativos na administração do IVA estadual e municipal, o Conselho Federativo pode se transformar no Cavalo de Tróia do governo federal para liquidar, de vez, a autonomia dos governos subnacionais, sem a qual nenhuma federação subsiste, ao pôr cobro à liberdade que possuíam de manejar os seus principais impostos, o ICMS e o ISS, para seus objetivos, com a sua extinção e a criação do IBS.
Nem mesmo a definição da alíquota de referência do novo imposto, o IBS, deve, de acordo com a proposta, ser atribuição deste Conselho, cabendo ao Tribunal de Contas da União (TCU), um órgão federal responsável pela fiscalização das contas públicas do governo federal, a responsabilidade de fornecer, ao Senado Federal, os cálculos para o seu estabelecimento. Ademais, caso haja alguma modificação na composição do Conselho, beneficiando o governo federal, o que sempre é possível em um Senado cordato com o Poder Executivo, guiado mais pelos interesses dos partidos políticos do que efetivamente dos próprios estados que representam, estados e municípios podem perder o pouco da autonomia que ainda lhes resta na administração de suas finanças.
O fato é que tal como se encontra a proposta, prestes a ser aprovada no Senado Federal, embora represente algum avanço para reduzir a complexidade do sistema e a cumulatividade dos impostos, continua mantendo praticamente intocadas, podendo até agravá-las, suas principais mazelas, como as de operar como instrumento de concentração da renda, o que prejudica o crescimento econômico, e de enfraquecer, ainda mais, o equilíbrio federativo. Com isso, o país pode perder, mais uma vez, a oportunidade de avançar na correção de seus problemas e de sua efetiva modernização.
*Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social e do Grupo de Estudos de Conjuntura do Departamento de Economia da UFES, e autor, entre outros, do livro “A economia Política Clássica: a construção da economia como ciência”, lançado pela Editora Contracorrente.