Guilherme Narciso de Lacerda*
Passa os tempos e o Brasil continua sendo um dos países mais desiguais do Planeta. Pesquisa divulgada em 2022 pelo World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais), que integra a Escola de Economia de Paris e é codirigido pelo economista francês Thomas Piketty, mostra que nosso país continua ocupando uma das últimas posições no ranking mundial na distribuição social e de renda.
Essa constatação não é nova. O que surpreende é a aceitação da sociedade em geral com a situação histórica que marca nossa realidade.
Entre os mais de cem países analisados no relatório, o Brasil é um dos mais desiguais. Após a África do Sul, é o país com maior desigualdade entre os membros do G20 (grupo das vinte maiores economias do planeta).
Os dados de 2021 indicavam que os 10% mais ricos no Brasil, com renda anual acima de 81,9 mil euros representavam 58,6% da renda total do país. O estudo afirma que as estatísticas disponíveis indicam que os 10% mais ricos no Brasil sempre ganharam mais da metade da renda nacional.
Para se ter uma ideia, nos Estados Unidos, país com fortes desigualdades sociais, os 10% mais ricos ganham 45% da renda geral do país. Na China, esse índice é de 42%. Na Europa, ele se situa entre 30% e 35%.
Já o 1% mais rico no Brasil, com uma média de renda anual de 372 mil euros leva mais de um quarto (26,6%) dos ganhos nacionais.
A metade da população brasileira mais pobre só ganha 10% do total da renda nacional. Na prática, isso significa que os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que recebem os 10% mais ricos no Brasil. Na França, essa proporção é de apenas 7 vezes
Todavia, ainda mais grave que a desigualdade de renda é a de patrimônio em nosso país. Ela é, de longe, uma das maiores do mundo. Em 2021, os 50% mais pobres possuíam apenas 0,4% da riqueza brasileira (ativos financeiros e não financeiros, como propriedades imobiliárias, veículos). A título de comparação de uma nação próxima, na Argentina, por exemplo, essa fatia da população possui 5,7% da fortuna do país.
Os 10% mais ricos no Brasil possuem quase 80% do patrimônio privado do país. A concentração de capital é ainda maior na faixa dos ultra ricos, o 1% mais abastado da população possuía, em 2021, praticamente a metade (48,9%) da riqueza nacional. Nos Estados Unidos, o 1% mais rico detém 35% da fortuna americana.
O estudo do World Inequality Lab mostra que o processo de aprofundamento da desigualdade de renda e de patrimônio no mundo se manteve, e até se intensificou, durante os dois anos da pandemia de Covid-19. O Brasil seguiu essa tendência: o patrimônio do 1% mais rico no Brasil passou de 48,5% em 2019 para 48,9% do patrimônio total em 2021.
A desigual distribuição de renda e de patrimônio está presente em todos os países, embora haja diferenças imensas entre uns e outros. As situações mais escandalosas estão nas regiões menos desenvolvidas localizadas no continente africano, o oriente médio e na américa latina. Os países com distribuições menos desiguais são os do continente europeu, os quais possuem estruturas de proteção social consolidadas.
Em 2021 os 10% mais ricos do mundo ganhavam 52% da renda mundial, enquanto os 50% mais pobres recebiam apenas 8,5% do total. As diferenças eram ainda maiores em relação ao patrimônio: a metade mais pobre possuía apenas 2% da riqueza mundial (no Brasil era menos de 1%), enquanto os 10% mais abastados possuíam 76% da fortuna global.
A desigualdade de renda e de patrimônio cresceu muito no mundo e, em especial em nosso país nas últimas três décadas. Ela foi uma consequência direta da desregulamentação e da intensificação das transações virtuais nos mercados bursáteis, com sofisticadas estruturas de acumulação financeira.
A dimensão da perversidade social e humana associada à desigualdade de renda nem sempre é devidamente compreendida. As profundas diferenças de renda e riqueza existentes em nosso país são responsáveis diretas pelas vergonhosas estatísticas sociais que apresentamos.
A transformação de tal incômoda situação passa por revisões estruturais da legislação e por políticas públicas eficazes. Um dos fatores causadores da grotesca realidade brasileira está relacionado à estrutura tributária. Por isso, é imperativo levar adiante uma reforma que desloque o peso da tributação do consumo, como é hoje, para a incidência sobre a renda e o patrimônio.
As propostas de taxação dos fundos de investimentos exclusivos e dos fundos offshore (como são conhecidos os fundos de investimentos de brasileiros no exterior) são ações de governo que precisam ser bem compreendidas e apoiadas pela sociedade.
A proposta de se taxar os fundos exclusivos foi feita por meio da Medida Provisória 1.184/2023 apresentada no final de agosto último. Tais fundos abrigam aplicações financeiras superiores a R$10 milhões de reais e os seus titulares são únicos; ou seja, não são aplicações disponíveis para o público em geral. De forma injustificada estes fundos de milionários não eram taxados pela Receita Federal, tal como são as aplicações financeiras de valores menores, com cobranças semestrais incidentes sobre os rendimentos.
Simultaneamente foi encaminhado pelo Executivo o Projeto de Lei nº 4.173/23 destinado a taxar os investimentos sediados no exterior. Há uma expectativa de que tanto este PL quanto a MP sejam aprovados a curto prazo, para resultar em aumento de arrecadação já em 2024.
Tais medidas apenas atenuam o caráter regressivo e injusto da estrutura tributária brasileira. Elas são iniciativas que visam cobrar impostos dos muito ricos e passa longe das realidades das classes médias. Ainda continua sem ser alcançado pelo fisco os dividendos obtidos nas aplicações financeiras de renda variável; uma aberração da economia brasileira. Mesmo assim, impressiona como que ainda há vozes discordantes que reagem às propostas, com argumentações frágeis, sempre na linha de que os governos gerem mal os recursos.
O enfrentamento do vergonhoso cenário social brasileiro e a péssima distribuição de renda e riqueza nacional precisam receber maior apoio popular. As medidas de revisão tributária propostas são passos necessários nesta direção.
Guilherme Narciso Lacerda. Doutor em Economia pela Unicamp, mestre em Economia pelo IPE-USP, professor (apos) do Departamento de Economia da UFES. Foi Presidente da FUNCEF (2003-20010) e Diretor do BNDES (2012-2015). Autor do livro “Devagar é que não se vai longe – PPPs e Desenvolvimento Econômico”, publicado pela Editora LetraCapital.