Guilherme Lacerda, de Manhuaçu e botafoguense sempre
Logo, logo, farei setenta anos. São quase sete décadas de alegrias, tristezas, perdas, frustrações e também de muitas realizações. Olho para trás e me conforto de que até aqui valeu a pena ter vivido. Minha alma não é pequena...
Com meu pai e junto com meu irmão nasci botafoguense. Foi uma dádiva dos Deuses. E é sobre a vida e sobre os meus sentimentos profundos que quero escrever nesta manhã de finados de 2023, após o inesquecível e dramático jogo com o Palmeiras pelo campeonato brasileiro, ontem à noite. Eu estava no Nilton Santos; estava bem posicionado e vi tudo de perto, não apenas virtualmente. Mais uma dádiva dos Deuses.
Aprendi que a vida é um emaranhado de coisas que nos enreda, nos fortalece às vezes, nos machuca em outras e assim vamos, cada um procurando a razão de ser, de ter uma trajetória com dignidade, tempos de prazer, de realizações, de vaidades, de provações que às vezes achamos que não aguentaremos.
O gostar do futebol, esporte mais popular de grande parte das culturas contemporâneas, foi uma coisa corriqueira, natural, que nos envolveu desde menino, chutando bolas de plástico. Ele ajudou na descoberta da própria identidade pessoal. Era uma descoberta de “uma coisa gostosa dentro da gente”, uma identidade que na formação juvenil aproximava alguns e rivalizava com outros.
Os tempos de criança e juventude foram assim, e, aos poucos percebíamos que éramos minoria, mas éramos grandes, tínhamos do que nos orgulhar. Foi ouvindo meu pai falar de Didi, Garrincha, Quarentinha, Nilton Santos, Zagalo, que essa marca na alma foi cicatrizando em mim. E assim fomos virando gente grande, com pensamentos e ações cada vez mais voltadas para a sobrevivência, para as realizações materiais, profissionais, e logo em seguida, para trazer coisas concretas para si e para a família e ficando sisudo, olhando a acidez do mundo e das coisas concretas que nos levava a valorizar o poder, a vaidade, mas também a vontade de ajudar a fazer acontecer e deixar nossa marca no mundo, num mundo que queremos melhor.
E assim foi indo. Sei que esta experiência não é única; é de milhares, de milhões por todo o canto, cada um com sua herança ou descoberta. Sei também que a identidade apaixonada com um time de futebol e o torcer/sofrer é visto por quem está ao redor até como uma certa insanidade.
E é nesta esquina do pensamento que fico a pensar no que aconteceu. Ora, foi apenas um jogo de futebol; não exagere, falo com meus botões, seguindo Nelson Rodrigues. O que importa isso perante a dramática realidade que vivemos? Com sofrimentos e cenas horrorosas lá de longe, mas também em nossas terras Com uma guerra cruel, com 4.000 crianças morrendo, com jovens assassinados em uma festa como outra qualquer, com miséria eterna nas comunidades daqui e lá de longe, com pessoas assassinadas em um bar na calçada? Tudo vai virando rotina e se normalizando e meu coração me cobra: não aceite, não deixe por menos, reaja. Então, por que sofrer com um jogo em que o time do coração faz uma metade como poucas vezes visto no mundo do futebol, se distancia no placar e depois tem uma outra metade que tudo se transforma, tudo se embaralha e o resultado é a derrota?
E penso, e penso, e sofro, e concluo que esta magia do futebol é a magia do inesperado, do imprevisto de nossas próprias vidas. E nela, há resultados de nossos êxitos e de nossos fracassos. Mas há também o resultado do que nos fazem, daquilo que nos atinge a partir de ordens que não se pode aceitar. Caso contrário, não faz sentido viver; viver sem dignidade não é viver. Porque isso não é magia; é abuso.
É isso. Um time ter um apagão de uma hora para outra e se transformar “da água para o vinho” é uma coisa que nos mata por dentro, mas temos que aceitar com resiliência e buscar um equilíbrio. Outra coisa, muito diferente, que nos leva a profundas revoltas internas e nos instiga a ter os mais fortes sentimentos primários do homem natural, é saber que a nossa emoção de antes, a nossa alegria de um primeiro momento foi nos tirada por abuso de autoridade, por ousadia de uma Bandalha. Não, isso não se pode aceitar porque não é natural; não é do humano. Bobos dirão que é vitimismo; bobos, tolos, pequenos, que não conseguem contar até cinco e acham que o polegar é o infinito, como mostrou Borges.
Escrevo com o coração em sangue, com sentimentos ruins de revolta, com indagações interiores e driblando pensamentos rudes. Mas reajo. A indignação é benigna, não é a de se armar para a guerra, é para enfrentar o abuso e é isto o que se clama, que a alegria de organizações coletivas humanas não seja destruída pelos “donos do poder”, por motivos inconfessáveis.
Serei eternamente contrário a ações hooliganianas, contra a violência de jovens pobres ou ricos que se matam por ódios a camisas; não, isso não pode acontecer. Mas também não pode continuar a existir tamanhas agressões a sentimentos coletivos, gerados por motivos vis. Não se trata de incompetência profissional. O problema é maior. A tecnologia e as atitudes desmentem justificativas menores, humanas, de erros de interpretação, de que o jogador foi com força desproporcional etc e tal...
Sei que é apenas futebol. Mas as cenas serão eternas para quem quiser ver. O desequilíbrio do grupo até então vitorioso foi vítima de uma ação criminosa e por isso é preciso que todos os que carregam consigo uma paixão alvinegra reajam e digam que não aceitam. Tivemos erros? Claro que tivemos. Mas não é esse o ponto. Não foi o futebol que venceu. Foi o abuso! Não importa o que vai acontecer daqui para a frente. Chega! Os nossos sonhos não envelhecem e a indignação será eterna!
Brasília, 02/novembro/2023