Por Erlon José Paschoal*
Uma transformação profunda nas relações sociais, a partir do avanço veloz das tecnologias digitais e da Internet, e inúmeros conceitos povoando o horizonte de grande parte da população mundial, precisam ser analisados e entendidos, tais como “Colonialismo de dados”, “colonialismo digital”, “capitalismo de vigilância”, “capitalismo de plataforma” e “inteligência artificial”, entre outros. Nesse sentido, a Editora Autonomia Literária lançou a obra “Colonialismo de Dados - Como Opera a Trincheira Algorítmica na Guerra Digital”, organizada por João Francisco Cassino, Joyce Souza e Sérgio Amadeu da Silveira.
Os autores fazem uma analogia entre o colonialismo histórico extrativista e colocado em prática pelos países que invadiram e exploraram os novos continentes, com a extração maciça de dados pessoais e sociais, visando não mais a usurpar as matérias-primas e os recursos naturais locais, mas as experiências, hábitos e comportamentos dos indivíduos, grupos e instituições conectadas com as novas tecnologias. O objetivo final é potencializar o acúmulo de capital e obter lucros, a partir da utilização oculta dos milhares de dados coletados. Vale lembrar que as big techs denominadas aqui GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Appel e Microsoft) atingiram juntas há pouco um valor de mercado de 1,83 trilhão de dólares.
Apoiando-se inicialmente na visão quase profética dos desdobramentos do capitalismo, presente na obra de Lênin, “Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo” publicada em 1916, e que aborda a formação e ampliação dos monopólios, cartéis e oligopólios, a expansão do imperialismo e a divisão do mundo entre algumas poucas corporações de países que se apoderaram de grande parte das riquezas do planeta, os autores então analisam as novas condições de dominação e as novas formas de exploração.
Em um artigo citado pelos autores “Digital colonialism: the evolution of American empire”, Michael Kwet define colonialismo digital como o “uso da tecnologia digital para a dominação política, econômica e social de outra nação ou território” e considera que essa nova forma de dominação se coloca como uma ameaça de longo alcance para o Sul Global, tal como o colonialismo clássico foi nos séculos anteriores.
Nesses novos modelos de negócios em escala global, os dados se tornaram a nova mercadoria de alto valor agregado, um ativo valioso e um dos insumos principais da máquina neoliberal de elevação exponencial dos lucros e de diminuição de custos, com pouca necessidade de mão de obra. E para conseguir isso foram sendo desenvolvidos modelos, comandos programados e processos matemáticos capazes de operar em escala mundial e online, formatados para extrair as mais diversas informações acerca dos usuários das redes: os famigerados e “misteriosos” algoritmos.
Um exemplo citado pelos autores são as plataformas educacionais de grande parte das universidades brasileiras e os arranjos das chamadas smart cities (cidades inteligentes) ofertados gratuitamente pela Google e pela Microsoft, semelhantes aos espelhinhos oferecidos aos indígenas pelos primeiros colonizadores, o que significa no fundo se apossar de dados estratégicos para o nosso desenvolvimento e a soberania do país. Vale mencionar que depois do golpe do 2016, o governo federal com sua postura entreguista e privatista ofereceu de bandeja tudo o que foi possível para as grandes corporações mundiais.
Os autores destacam que esses dois exemplos pressupõem a quantificação e o monitoramento contínuo das atividades universitárias e da vida social, visando transformar todas essas práticas e esses comportamentos e perfis em “dados comercializáveis a partir da criação de sensores e algoritmos desenvolvidos especificamente para esse fim”. E, como mencionado, todas as empresas empenhadas em capturar e utilizar os dados coletados estão localizadas “nas nuvens” dos EUA, onde ficam armazenados, o que evidencia a dependência, cada vez mais acentuada dos países ditos periféricos, da capital do imperialismo neoliberal.
Essa hegemonia das grandes corporações obviamente acarreta um lobby constante nos governos desses respectivos países para que não invistam em pesquisas ou na criação e desenvolvimento de tecnologias próprias, uma vez que eles podem adquirir facilmente tudo o que precisam, e até mesmo alugar e implementar algoritmos e estruturas de modulação algorítmica. Ou seja, se apropriam de nossa matéria-prima e vendem depois os produtos manufaturados! O que aumenta sem dúvida, a exclusão social e as desigualdades entre países e grupos sociais. Soma-se a isso, a alienação técnica da maioria dos usuários que prefere acreditar que essas empresas e plataformas digitais são neutras e “querem apenas nos ajudar”.
Para os autores, esse cenário de táticas extrativistas e de dependências profundas, nesse nosso novo mundo dominado cada vez mais pela inteligência artificial, resulta de uma convergência bem sucedida entre a ideologia neoliberal, o neocolonialismo e as grandes empresas de tecnologia, a serviço do aumento dos lucros e da dominação imperialista. Não podemos esquecer também que as chamadas “guerras híbridas” fazem uso geral e irrestrito dessas novas tecnologias integradas com os monopólios de comunicação, para manipular, induzir e até mesmo alterar a estrutura de poder em países não devidamente submissos.
Esse poder imenso dado a poucas corporações faz acender o sinal de alerta em todos que acreditam e lutam pela liberdade, pelo desenvolvimento econômico igualitário e pela soberania. Apesar da complexidade do tema, os autores abordam essas questões com clareza e objetividade. Fica a dica!
* Gestor Cultural, Diretor de Teatro, Dramaturgo, Professor e Tradutor de Alemão.