Por Guilherme Henrique Pereira
Nesse Natal recebi dois livros como presentes. Ambos inesperados, mas que se revelaram surpresas inesquecíveis.
O primeiro foi o livro biografia de David Robert Jones (1947-2016), para os roqueiros da época, David Bowie. Nascido na Inglaterra, no ano mágico (que eu também nasci) de reconstrução e muita criação nos diversos campos da vida, apesar das paisagens desoladoras deixadas pela guerra recém terminada. Maria Hesse e Fran Ruiz foram felizes na escrita e na editoração do livro que me prendeu a atenção e o li em duas ou três sentadas.
Conseguiram também mostrar um David Robert Jones como intelectual, com habilidades na música, no teatro, no cinema e nas artes plásticas, embora alguns relatos apareçam com certo “glamour”, talvez exagerado. E principalmente mostraram as lições de vida deixadas pelo biografado: uma insistente capacidade de reinventar-se, tanto em sua produção artística como no empreendimento do seu negócio; dedicado amor a família e admirável capacidade de perdoar e manter amigos.
Senti falta no livro de um pouco mais de informação sobre suas atividades como pintor, e como ator cênico, teatro, cinema e documentarista, fato que foi apenas mencionado em poucos parágrafos. Não foi opção dos autores, mas creio que o livro ficaria mais completo se tivesse apresentado algumas de suas mais importantes letras, certamente ajudaria aos leitores como eu, não roqueiros da segunda metade do século XX, a compreender melhor o pensamento de Bowie; com isso ter também uma interpretação de seu engajamento como cidadão, na política e nas importantes questões sociais de seu tempo, dimensões da figura pública que não foram tratadas nesta biografia.
No mais, valeu muito à pena esta leitura. E fiquei entusiasmado para encarar o segundo bem rápido.
O segundo tinha ilustração de capa com cara do Brasil, mas, o melhor achado foi o escritor Itamar Vieira Junior e sua capacidade narrativa gigante com seu romance “Torto Arado” de 2018, que já conquistou alguns prêmios, e certamente continuará sendo traduzido para que o mundo conheça o tamanho da literatura brasileira, bem como premiado em outras plagas, para que o talento do jovem escritor receba o reconhecimento merecido.
Um romance com muitas dimensões, ficcional, mas, poderia não ser, dado o realismo que narra a miséria do passado escravocrata do Brasil, passado aliás, que teima estar presente ainda hoje na brutal desigualdade que marca a nossa sociedade; um mergulho na cultura negra e rural que o autor se mostra profundamente conhecedor, mas não espere encontrar personagens masculinos tipo coronéis, ao contrário coloca em relevo o papel da mulher e a coesão familiar, talvez como forma de melhor sobreviver naquele mundo tão injusto; Bibiana e Belonísia são as personagens que se destacam na saga de resistência de um povo nas centenas de fazendas “Água Negra” por este país afora. Mas que isso, também foram mulheres importantes no núcleo familiar e entre os trabalhadores, companheiros da mesma miséria.
Uma narrativa que prende a atenção pelo seu equilíbrio entre as muitas tramas, o amor pela natureza que garante o sustento, a fria e injusta relação social de trabalho com proprietários da terra, sempre ausentes, quase invisíveis; a religiosidade e os dramas familiares, com o dramático acidente que deixará a principal narradora muda.
E para concluir esta nota, me parece importante falar do autor – Itamar Vieira Junior - que tem sólida formação acadêmica, Geógrafo com doutorado (conforme orelha do livro) em estudos étnicos africanos pela Universidade Federal da Bahia, sem dúvida um perfil um tanto raro entre os nossos romancistas. Uma formação que bem explica sua habilidade em narrar com maestria a desumana situação de sobrevivência a que foram expostos os ex-escravos, o trabalho árduo, a exploração desta minoria, mesmo assim mantinham a cultura e a religiosidade passadas de geração em geração.