Leio, preocupado e impotente, sobre os desastres ambientais superlativos que têm caído no nosso país. No Espírito Santo, belas cidades como Mimoso do Sul e Muqui foram destruídas pelas chuvas. Não podemos dizer “lavadas”, pois a sujeira deixada foi uma das parcelas dos problemas a serem resolvidos com dedicação e muita dor de cabeça. Um esforço de recuperação de parte das perdas, quando esse mesmo nível de trabalho, se fosse pelo progresso e bem-estar, daria um resultado fantástico e maravilhoso.
E, pouco depois, veio outra tragédia, no Rio Grande do Sul, estado rico e conhecido por estar de braços dados com o progresso. Caiu um dilúvio bíblico, afetando a capital e as cidades situadas nos belos vales gaúchos, a maioria dos municípios do estado.
Tanto em Mimoso como no Rio Grande, ambos do Sul, tenho amigos que passaram ou estão passando por situações críticas. Relataram e ainda estão relatando o desespero de terem parentes pernoitando sobre telhados de casas, perdendo entes queridos e abandonando seus animais à própria sorte. E as chuvas não perdoam seres humanos, animais domésticos e nem animais selvagens.
Essa é a grande tragédia que vivenciamos hoje. E pergunto: tem alguma lição a ser aprendida?
Eis que me veio à cabeça o que aconteceu no verão de 1979. Vou contar o que vi, fiz e senti – e ainda sinto! E aprendemos muito pouco sobre as lições que tivemos de resolver.
Aliás, no Espírito Santo, encontramos nomes de ruas de artistas, desportistas e políticos de fora do estado, alguns que nada fizeram ao povo capixaba, mas não temos uma só lembrança sobre as chuvas que sofremos naquele fatídico ano, seus heróis e suas vítimas, nem mesmo para servir de lembranças de um passado heroico para alguns e covarde para outros e termos a oportunidade de aprendermos com o passado. Então, peço ao leitor um pouco de paciência, pois seguirá aqui o meu relato.
Eu fui uma quase vítima dos primeiros pingos dessa chuva. Um ano antes, meu carro estava com o comportamento estranho, acionando por conta própria o limpador de para-brisas no seco, chegando a arranhar o vidro. Achei uma razão para isso: a atmosfera estava tão ionizada que estava fechando o circuito. Esse problema durou meses e profetizei que a chuva, quando fosse cair, seria colossal.
E foi! E as primeiras gotas caíram sobre o meu Passat. Seguiu-se uma quantidade comparável à lançada por uma mangueira de incêndio, e quando cheguei próximo à residência da família da minha esposa, senti que não adiantava mais acelerar o carro que ele não avançava, e ainda balançava. Eu não tinha mais as rodas em contato com o chão e as águas estavam me levando com carro e tudo em direção ao rio Marinho. Mantive o veículo acelerado ao máximo para que a água não entrasse pelo cano de descarga e as rodas vieram a me servir de hélices improvisadas. Um ônibus passou por mim e causou uma onda que fez o carro se inclinar um pouco, o que não impediu que eu navegasse até uma ladeira. Pude assim visitar minha futura esposa e ainda voltar para casa, mas o carro não deixou de ficar comprometido. Não é qualquer motor que pode trabalhar com parte imersa em água.
O Governo do Estado, na liderança do Dr. Élcio Álvares, cruzou os braços. Quem tomou a liderança das ações foi o Arcebispo Dom João Batista da Mota e Albuquerque e o radialista Oswaldo Oleari. Dom João Batista, ao saber que os insumos para as famílias necessitadas estavam sendo desviados e vendidos, amaldiçoou, isso mesmo, essa palavra forte: amaldiçoou!… Usou a televisão e lançou maldição para quem se aproveitava gananciosamente dos desabrigados.
Na época, eu era um Chefe Escoteiro novato. Os jovens rapazes do meu Grupo Escoteiro, o antigo 15º Grupo de Escoteiros do Mar Marinheiro Marcílio Dias, não mediram esforços. Trabalharam com afinco nos pontos de arrecadação e na guarda de remédios.
O “Marcílio Dias” não foi o único Grupo Escoteiro atuante. Em Cariacica, onde os ônibus impedidos de prosseguir deixaram os passageiros às suas sortes, os Escoteiros coordenados por Rossano Ramos conseguiram com a população de Campo Grande alimentos e banheiros. Em Vila Velha, o 16º Grupo Escoteiro Barão de Teffé, sob a orientação de Alberto Farias Gavini Filho, obteve uma arrecadação volumosa e significativa para as vítimas.
O Rio Doce havia subido excessivamente. Em Governador Valadares, parentes meus foram forçados a abandonar um pobre animal, que tanto amavam, que acabou morto afogado, preso à sua corda. Em Aimorés, o rio se mostrou caudaloso no centro da cidade, numa imagem que ainda não me saiu da cabeça. Baixo Guandu ficou totalmente isolada. Em Colatina, a água tomou conta de todos os bairros baixos da cidade, bairros esses em cotas bem mais elevadas que o nível alto do rio. Em Linhares, onde os Escoteiros prestaram também um trabalho notável, a água causou estragos extraordinários. Regência, na foz do Rio Doce, praticamente tinha deixado de existir.
Muitas propriedades foram perdidas. Pior, muitas vidas se foram. Vidas essas cujas memórias foram simplesmente abandonadas.
Oswaldo Oleari assumiu a locução da Rádio Espírito Santo e não abandonou o microfone, virando noites. Agradeceu a compreensão de todos os patrocinadores dos programas que foram interrompidos para a sua locução e se tornou em um grande centro de informação, mesmo com a Cúria tendo a Rádio Capixaba à sua disposição.
Tive uma experiência inédita na Rádio. Como haviam me dado acesso direto ao radialista, que fazia a locução com um copo de uísque ao seu lado, quando eu chegava, assumia a locução enquanto ele se ausentava para tragar um cigarro. Meu trabalho foi fácil, pois havia um escaninho com os avisos, as notícias e as recomendações a serem apresentadas. Era só ler os textos na ordem colocada. Aprendi a fazer imposição de voz na marra!
Na época, estagiava na então Vale do Rio Doce. Meus chefes me liberaram, pois viram que seria importante alguém trabalhar em prol das suas contribuições, e esse alguém fui eu! Um velho engenheiro que lutara pela Resistência Italiana dera a ideia de usar pastilhas de cloro que os soldados usavam na Segunda Guerra para tratamento da água de consumo. Me recordo que Oswaldo tinha achado graça nessa observação, mas parece que a Cesan escutou nossa conversa e deu a ideia de se usar um produto mais conhecido: água sanitária em proporção adequada. Usei esse aprendizado nas chuvas de 1998 em Macaé.
Outra contribuição do pessoal da Vale foi uma vaquinha para a compra de um grande sortimento de seringas e agulhas descartáveis. Naqueles tempos anteriores à Aids, esse material era pouco usado, quase um luxo. Uma farmácia tinha adquirido o material e, provavelmente, estaria pensando o que fazer com aquilo. O farmacêutico entrou em contato com a rádio e pedi a colaboração dos meus tutores profissionais. Foi feita a compra e corri para entregar à Emescam, onde a distribuição de medicamentos estava sendo centralizada.
Encontrei um radioamador que tentava avisar à Rádio Capixaba que o céu em Baixo Guandu tinha se aberto. Consegui avisar ao Aeroclube do Espírito Santo e vim a saber que Fernando Mainardi, um antigo Chefe Escoteiro e paraquedista, saltou sobre a cidade com alguns médicos que praticavam o mesmo esporte. Com eles, medicamentos e instrumentos para o povo isolado.
Alguns escoteiros mais velhos do “Marcílio Dias” testemunharam como estava o Rio Doce quando levaram mantimentos até à margem sul. Eu não soube como foi feita a travessia do material, mas creio ter sido por helicóptero. Relataram cenas impressionantes.
Foi um grande volume de trabalho de todas as partes. Apesar da ação de pessoas desonestas, a sociedade, como um todo, foi heroica. Um trio elétrico, novidade no estado, que veio da Bahia para animar o Carnaval capixaba, trabalhou incansavelmente, recolhendo roupas e alimentos pela rua, usando seus potentes alto-falantes. Interessante é que eles anunciavam que a campanha era dos Escoteiros, e não da Cúria.
E o Exército não atuou. Os soldados ficaram de prontidão, esperando uma ordem do Governo Federal que nunca veio, prontos para agir, sem, entretanto, poderem dar um passo. Tive a oportunidade de conversar com Dr. Élcio Álvares e lhe perguntei o porquê ele tinha cruzado os braços, e me respondeu que o Governo Federal lhe ordenara a fazer o mínimo para que o novo governador a tomar posse, Eurico Resende, viesse a se tornar o herói do estado! Em suma, Élcio Álvares perdeu a oportunidade de ser um dos governantes mais bem lembrados pela população do Espírito Santo. Durante a tragédia, um prefeito usou de uma entrevista com Oswaldo Oleari para reclamar energicamente contra o governador, e essa reclamação avançou na Hora do Brasil, quando todas as rádios brasileiras eram obrigadas a suspender suas programações para transmitir as informações oficiais da nossa Nação. Nosso heroico radialista não permitiu que a entrevista fosse suspensa, na rigorosa época Militar, em que tal atitude implicaria em prisão sem julgamento.
E ainda testemunhei insensibilidades. Um carnavalesco ligou para a rádio, reclamando que era hora de abandonar as notícias sobre as chuvas para se começar a se dedicar as folias de Momo. Eu conhecia a pessoa e lhe ralhei um sermão. Nunca mais o encontrei.
Tudo passou e não me tornei radialista! E consegui ainda atuar nas chuvas de Macaé em 1998, mas hoje, só posso rezar pelos nossos heróis, que ainda existem, e por misericórdia aos atingidos.
Mas o que aprendemos foi pouco. Não temos ações preventivas nem preditivas. Já escutei de um político algo parecido como: “Orçamento para isso? Por que? Não está chovendo…”. Isso faz com que a nossa Defesa Civil seja simplesmente reativa. Em suma, qualquer contingência não tem uma resposta adequada, dando margens a oportunistas desonestos e sem ética, improvisações de baixa eficácia e atos heroicos extremos que poderiam ser simplesmente heroicos se o aprendizado fosse levado a termo. Pelo menos, solidariedade e coragem não faltam aos brasileiros.
Pelo menos, nós, Escoteiros, conseguimos, um tanto tardiamente, é verdade, conceder a Oswaldo Oleari uma Medalha de Gratidão pelo excelente trabalho que tivemos em conjunto. Desconheço se ele recebeu outro reconhecimento.
Sobram então a trágica lembrança que me assombra até hoje. Na Praça Oito, em Vitória, tinha sido instalado um centro de Assistência Social. Uma profissional informara a um homem que acabara de chegar a Vitória: “Já temos a informação sobre sua mulher e seus filhos em Regência. Eles foram encontrados mortos. Podemos fazer alguma coisa pelo senhor?”. E ele respondeu, com esforço para mostrar coragem: “Me ponha para trabalhar. Deixe-me salvar alguém, já que não pude salvar minha família!”.
*Engenheiro, escritor, autor de A montanha dos Três Mestres, dentre outros.