Por Fabrício Augusto de Oliveira*
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem insistido no fato de que todas as mudanças no sistema tributário se guiam pelo princípio da neutralidade, ou seja, de que não visam aumentar nem diminuir a arrecadação, mas apenas deslocar sua incidência de um para outro contribuinte. Foi o argumento que empregou para defender a medida anunciada com a proposta de corte de gastos pelo governo sobre a isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 mil reais, cuja perda de arrecadação seria compensada com uma maior cobrança para os contribuintes que ganham acima de R$ 50 mil.
De acordo com os dados do Ministério da Fazenda divulgados na imprensa, nos quais o ministro se apoia para fazer essa proposta, atualmente a alíquota efetiva, ou seja, a alíquota que de fato incide sobre o montante dos rendimentos – tributáveis e não tributáveis – do 1% mais rico da população do país, não passa de 4,2%, enquanto a cobrada do 0,01% mais rico é ainda mais camarada, de apenas 1,75%. Já a cobrada sobre a classe média, que mais arca com o ônus da tributação da renda, anda em torno de 12%.
A proposta é de estabelecer uma alíquota mínima de 10% para quem ganha mais de R$ 50 mil por mês, independentemente da origem ou fonte do rendimento – aluguéis, dividendos, salários, pró-labore, juros etc. Quem ganha R$ 600 mil no ano pagará R$ 60 mil de imposto, R$ 700 mil, R$ 70 mil, numa escala que pode se tornar progressiva.
Atualmente, o cálculo do imposto é feito da seguinte maneira: somam-se os rendimentos tributáveis previstos na legislação, deles deduzindo as despesas nela também contempladas com os limites estabelecidos, sendo que para a saúde essa dedução é permitida em até 100%, obtendo-se a renda líquida tributável sobre a qual se aplica a alíquota progressiva do imposto que vai de 0% (isento) a 27,5% (a alíquota-teto). Ainda de acordo com o ministro, a mudança na estrutura deste imposto favoreceria não apenas quem ganha até R$ 5 mil/mês, mas também os que ganham até R$ 7,5 mil, o que pode elevar a renúncia fiscal para R$ 70 bilhões, que será compensada com o aumento do imposto para os ricos. Não está claro, no entanto, como isso será feito. Explica-se a razão.
Na tabela progressiva atual, a alíquota-teto de 27,5% é alcançada para quem tem uma renda próxima de R$ 5 mil, o que significa que ela terá, de ser, se mantida, completamente reformulada. A pergunta é: quais alíquotas comporão a nova tabela e quais deduções serão permitidas para os contribuintes com níveis diferenciados de renda? Pela proposta, a dedução das despesas com saúde será permitida apenas para quem ganha até R$ 20 mil por mês, significando que rendimentos superiores não poderão lançar mão deste benefício, aumentando, assim, sua carga tributária. Isso valerá também para pessoas com moléstia grave com renda acima de R$ 20 mil mensais, atualmente isentas do imposto de renda, que passariam a ser tributadas. Ou seja, não há clareza sobre essas deduções por se tratarem de dois conjuntos de contribuintes diferentes em termos de níveis de renda.
Se ainda não está claro o que pode ser deduzido para o cálculo do imposto, o mesmo acontece sobre os rendimentos que passarão a ser incluídos entre os tributáveis para o cálculo do imposto. Para obter a renda total será necessário considerar todos os rendimentos, incluindo os lucros e dividendos hoje isentos. Neste caso, isso deverá valer para todos os contribuintes, incluindo a classe média, já que este tipo de rendimento também integra a sua renda, embora em proporção bem menor do que a da classe rica. Isso poderá aumentar a tributação sobre essa classe de renda, reduzindo, pelo menos em parte, os ganhos que seriam obtidos com a mudança da tabela, a menos que se estabeleça que a inclusão de todos os rendimentos entre os tributáveis só vale para quem ganha acima de determinado nível de renda, o que pode levar à judicialização do imposto pelo tratamento diferenciado dado aos contribuintes.
Por essas razões não está também claro se continuará a existir apenas uma tabela do imposto de renda para todos os contribuintes, contemplando as diferenças entre os que ganham até R$ 600 mil por ano e os que ganham acima deste valor, incluindo todos os rendimentos, só para depois considerar o que poderá ser deduzido, e, aí, calcular o imposto devido de acordo com as novas regras, ou se existirão duas tabelas ou se ainda será criado um novo imposto exclusivo para os mais ricos, com regras diferentes, para as duas categorias de renda.
Por enquanto, como não foi divulgado o estudo completo das mudanças no imposto de renda, permanece um mistério o formato que se pretende para este imposto, o que desperta, com razão, várias dúvidas. Por isso, a posição dos presidentes da Câmara e do Senado de transferir para o próximo ano a apreciação dessa proposta, mesmo por que se contava com isso apenas para 2026, separando alhos de bugalhos, é bem-vinda, mesmo sabendo-se dos riscos de isso não ocorrer por se tratar de um ano pré-eleitoral. Porque, uma reforma importante, como é a do imposto de renda, não pode ser feita a toque de caixa, como quer o governo para tapar o buraco da isenção.
*Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social e do Grupo de Conjuntura do departamento de economia da UDES, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “A economia política clássica: a construção da economia como ciência”, publicado pela Editora Contracorrente em 2023.
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