Por Erlon José Paschoal*
A dramaturgia, entendida como a arte de composição de textos teatrais, passa por momentos de profundas mudanças como, aliás, todo o processo civilizatório. Vivemos uma época em que genocídios e extermínios de diversos povos são mostrados ao vivo e os horrores de massacres de crianças, adolescentes e mulheres muçulmanas são naturalizados, tais como a defesa do racismo, da homofobia, da misoginia e da agressão indiscriminada a negros e pobres. Nesse contexto, o desafio maior hoje seria construir um diálogo vivo e necessário com os novos públicos formados e influenciados em sua maioria pelas novas tecnologias e novas mídias, sobretudo as redes sociais interativas, sendo constantemente bombardeados por estímulos que enaltecem a eliminação do diferente e dos considerados descartáveis pelo sistema econômico neoliberal.
A Editora Cândida acaba de lançar de minha autoria “Nem tudo são flores”, um texto teatral protagonizado por uma família de bem e suas ligações perigosas com representantes de grupos sociopolíticos poderosos e cínicos, composto em grande parte por cenas permeadas de humor e senso crítico. A sucessão de fatos comuns e, ao mesmo tempo, estarrecedores proporcionam ao leitor/espectador um pequeno mosaico de comportamentos torpes, canalhas e cruéis, tão corriqueiros na sociedade brasileira atual.
Segundo Daniela Zanetti, Profa. Dra. do Departamento de Comunicação Social da UFES, “trata-se de um texto ágil e provocativo, convocando-nos a refletir sobre o tipo de racionalidade brutal, que permeia nossa sociedade, e sobre qual poderia ser nossa forma de atuação nesse enredo. Que papéis podemos assumir em uma narrativa que se proponha a enfrentar projetos de poder tão nefastos?”
A tentativa, sem dúvida é confrontar o leitor/espectador com uma realidade sofisticada e horripilante, elegante e assustadora em sua ganância e iniquidade que, com sua boa aparência e seus ditos bons costumes, arruínam as relações humanas. Para Edson Ferreira, ator, cineasta e roteirista, por sua vez, o texto “escancara a concretude de uma sociedade corrompida por dilemas morais, fanatismo religioso e resquícios de uma ditadura cívico-militar que parece não ter abandonado as entranhas mais sombrias do poder brasileiro. Seus personagens são figuras emblemáticas da tríade política-empresariado-religião. O que os iguala é o desejo de poder e a certeza da impunidade, cujos tentáculos alcançam as mais variadas camadas por onde passam."
Será que o teatro ainda é capaz de suscitar no leitor/espectador a necessidade imperiosa de transformar a sociedade, custe o que custar? Nesse caso, seria possível ainda acreditar que a vitalidade dessa arte milenar continua tendo uma função marcante na sociedade moderna? Ou talvez poderíamos afirmar que, em proporções bem menores que na Grécia antiga ou na época elisabetana de Shakespeare, ou nas décadas de 60/70 do século passado, o teatro redescobre permanentemente, quem sabe, a sua força e o seu significado na vida social, em todas as épocas e lugares?
A era pós-industrial ou pós-moderna produziu, através da indústria cultural, uma modificação na relação do público com o produto artístico. Submetido às regras do mercado capitalista e aos preceitos neoliberais, as artes se tornam “produtos culturais”, meros objetos de consumo, com a finalidade de dar lucro. Uma possível consequência é tornarem-se pasteurizadas e vazias. Ao invés de expressivas e críticas, as artes correm o risco de submeterem-se ao que é ditado pela moda e pelo consumo rápido. A massificação cultural produzida pelo mercado de arte não tem necessariamente por efeito, como até se poderia esperar, a democratização da cultura, mas pode acarretar a sua banalização, uma vez que transforma a arte em produto que deve, como qualquer outro produto, seduzir e agradar a um determinado tipo de consumidor, oferecendo-lhe sempre – às vezes com nova aparência - o que ele já sabe, já viu ou já fez.
Para muitos, a arte contemporânea encontra-se, assim, frequentemente diante de um dilema: servir aos propósitos do mercado consumidor ou manter seu caráter transformador propondo caminhos utópicos. A escolha de uma dessas alternativas parece conter em si um posicionamento do artista em relação ao papel social da arte, uma vez que as artes não podem ser pensadas nas sociedades contemporâneas como absolutamente separadas dos planos econômico e político, seja como crítica da realidade, seja como produto de consumo.
Os personagens de “Nem tudo são flores” se mostram em toda a sua infâmia e exibem a sua indiferença pelas iniquidades sociais e pela deterioração e milicialização de inúmeras instituições públicas que deveriam servir ao cidadão. A organização ampla e precisa de seus crimes obedece a uma lógica em que ludibriar, ameaçar, oprimir, eliminar e enriquecer se mesclam em um formato palatável, requintado e até mesmo atraente.
Talvez não seja possível se pensar o teatro atualmente sem concebê-lo como uma arte “engajada”, como um ato político. Se entendermos que mostrar aspectos reveladores do comportamento humano e as contradições perniciosas de nossa sociedade se faz cada vez mais necessário, devemos, então, entender o teatro como uma forma de luta e de resistência cultural contra o aviltamento dos anseios coletivos e da celebração da vida, usando a palavra, o gesto e as forças vitais nele presentes. Com paixão e alegria sempre.
*Gestor Cultural, Dramaturgo, Diretor de Teatro, Professor e Tradutor