Por Fabrício Augusto de Oliveira*
Quando o governo divulgou, por ocasião de seu lançamento, o pacote de corte dos gastos públicos, diante da necessidade de infundir maior confiança ao mercado de que respeitaria os compromissos contidos no novo marco fiscal aprovado em 2023, anunciou também, com alarde, que os seus custos seriam repartidos equanimemente entre vários segmentos e setores da sociedade.
Os então R$ 70 bilhões de economia com ele esperados para os anos de 2025 e 2026, posteriormente ajustados para R$ 71,9 bilhões, seriam obtidos, na proposta, com reduções dos gastos do governo federal com os trabalhadores, por meio da mudança das regras do reajuste do salário mínimo e redução do abono salarial; com os beneficiários de programas sociais (Benefício de Prestação Continuada e Bolsa-família); mudança do regime de aposentadoria dos militares, como os da idade mínima de 55 anos para se aposentar, de morte ficta e de transferência de pensões para suas filhas; limitação dos rendimentos dos altos salários do setor público, que ultrapassam o teto salarial estabelecido, por meio do pagamento de penduricalhos; redução dos recursos do orçamento destinados à emendas parlamentares; e limitação da restituição de créditos tributários para as empresas.
Ou seja, a ideia amplamente difundida foi a de que o ônus dos cortes seria distribuído entre trabalhadores, dependentes do Estado para sobreviver, mas estendidos também para marajás do setor público, militares, parlamentares e o setor empresarial. Não foi o que aconteceu com a sua aprovação.
Considerado insuficiente pelo mercado para ajustar as contas do governo para os dois próximos anos, considerando o cálculo de um déficit primário superior a R$ 100 bilhões ao ano por algumas instituições de pesquisa, o pacote terminou sendo desidratado ao ser aprovado no Congresso, com alguns de seus ganhos projetados sendo rejeitados ou com sua decisão transferida para o futuro. Foi o que aconteceu com o sacrifício que se esperava com a proposta de revisão da aposentadoria dos militares; com o estabelecimento de novas regras para o recebimento de penduricalhos pelos funcionários privilegiados do setor público sendo postergada para o próximo ano; com a limitação do pagamento para as emendas parlamentares de caráter impositivo; e também com a limitação da restituição dos créditos tributários para as empresas, medida que não foi sequer discutida.
Essas não foram, contudo, as únicas perdas sofridas pelo pacote de gastos no Congresso. A proposta de mudança de correção no Fundo Constitucional do Distrito Federal pela receita do governo para a inflação, com a qual se esperava economizar cerca de R$ 2,3 bilhões até 2026, também foi derrubada, assim como o Congresso reduziu, de 20% para 10%, os recursos que o governo anualmente coloca no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que era a proposta do governo para que aquele percentual fosse destinado ao ensino em tempo integral, o que lhe daria um alívio fiscal nas despesas públicas de R$ 11,6 bilhões em 2025. Com a redução para 10%, o impacto nas contas públicas caiu para R$ 5,8 bilhões, embora este seja um valor ainda mais alto que a economia inicialmente anunciada de R$ 4,8 bilhões. Do lado das receitas, o Congresso impôs novas perdas para o governo ao revogar a lei que instituiu o Seguro Obrigatório para Proteção de Vítimas de Acidentes de Trânsito (SPVAT), antigo DPVAT, cuja previsão de arrecadação em torno de R$ 3,5-4 bilhões.
Não se pode dizer que o Congresso tenha, no entanto, deixado o Executivo totalmente na mão, fechando-lhe todos os espaços para o ajuste pretendido. De um lado, concedeu-lhe algum espaço ainda que limitado, por meio de algumas medidas aprovadas, como: i) a prorrogação até 2032 da Desvinculação das Receitas da União (DRU), que dá maior flexibilidade para a gestão orçamentária; ii) a autorização para o governo poder lançar mão, entre 2025 e 2030, do superávit financeiro de fundos públicos, mas restringindo o seu uso à amortização da dívida e não, como era pretendido, para livre aplicação, além de ter reduzido para cinco os que poderiam ser usados para essa finalidade (fundos de Defesa dos Direito Difusos (FDD), Nacional de Segurança e Educação de Trânsito (FUNSET), do Exército, Aeronáutico e Naval), excluindo dessa possibilidade, como havia sido proposto originalmente, o Fundo Nacional Antidrogas (FUNAD), o Fundo da Marinha Mercante (FMM) e o Fundo Nacional de Aviação Civil (FNAC), por se tratarem de recursos para importantes investimentos); iii) a aprovação de vários gatilhos para reforçar e proteger o arcabouço fiscal autorizando o congelamento dos gastos sempre que a situação das contas públicas piorar, a proibição de concessão, ampliação e prorrogação de incentivos tributários e a limitação do crescimento de gastos com pessoal a 0,6%, no caso de se registrar déficit primário.
Mas no final, o que de fato se conseguiu de mais importante para o ajuste pretendido foi a aprovação de medidas que circunscreveram aos trabalhadores e aos beneficiários de transferências diretas de renda feitas pelo governo federal, caso do Bolsa-Família e do BPC, com os ganhos do último sendo reduzidos pela resistência do Congresso a algumas mudanças propostas pelo Poder Executivo.
No caso do trabalhador, as duas medidas mais importantes e que constituem o carro-chefe na economia de gastos do governo se referem à nova fórmula de correção do salário-mínimo (SM) e à redução do abono salarial. Doravante, a correção do salário-mínimo deixará de seguir a regra vigente que retornou com o governo Lula, combinando inflação com crescimento real do PIB, passando este reajuste a estar limitado a um aumento real de 2,5%, independente do desempenho da economia. No caso do abono, o benefício passará a ser corrigido apenas pela inflação anual, e não mais pela correção do salário mínimo, até atingir 1,5 SM, quando então se tornará permanente, sendo, portanto, reduzido de 2 para 1,5 SM.
No caso do BPC e do Bolsa-Família, a rejeição do Congresso de alguns pontos do projeto original do governo e de mudanças em outros, reduziria os prejuízos que teriam os beneficiários deste programa. A projeção do governo era de que, aprovadas as medidas propostas, seria possível economizar R$ 4 bilhões no BPC e R$ 5 bilhões no Bolsa-Família. Entre essas propostas figuravam, no BPC, restrições na definição de pessoas com deficiência, impedimento de acúmulo de benefícios de membros de uma mesma família, consideração do conjunto de bens e patrimônio de seus membros para ter acesso ao benefício, medidas que, no entanto, não foram aprovadas. Apesar de mantida a exigência proposta pelo governo da necessidade da biometria para o seu recebimento, esta foi, contudo, flexibilizada pelo Congresso para pessoas que moram em local de difícil acesso, que não deverão ter o seu pagamento cancelado por sua falta, cabendo ao governo encontrar meios para viabilizar este procedimento.
No Bolsa-Família, a proposta era de aprovar medidas para passar um “pente-fino” periodicamente no programa, por meio da adoção também da biometria obrigatória e a renovação de cadastro no Cad’Único a cada 24 meses para receber o benefício, medidas que foram aprovadas, mas mantendo também as restrições da exigência da biometria para os idosos ou pessoas que moram em localidades remotas. Com as mudanças introduzidas no Congresso nestes dois programas, seus ganhos caíram, respectivamente, de R$ 4 bilhões para R$ 2 bilhões no caso do BPC e de R$ 5 bilhões para R$ 4 bilhões no Bolsa-família para os anos de 2025 e 2026.
Refeitos os cálculos dos ganhos esperados com o pacote aprovado de cortes dos gastos, o ministro da Fazenda, otimista, projetou uma perda de R$ 2,1 bilhões, com um saldo positivo do impacto fiscal de R$ 69,8 bilhões nos anos de 2025 e 2026. Cálculos da XP Investimentos apontaram para perdas de R$ 8 bilhões, com o impacto fiscal tendo sido reduzido de R$ 52,3 bilhões, na sua estimativa, para R$ 44,4 bilhões até 2026, enquanto outros analistas apontam perdas que podem chegar a R$ 20 bilhões, com ganhos, portanto, muito distantes do que se considera necessário para atingir as metas do arcabouço fiscal nos próximos dois anos.
Assim, como os resultados do pacote não convenceram o mercado sobre o compromisso do governo com a melhoria e maior equilíbrio das contas públicas, mantendo a economia num cenário de fortes turbulências, o ministro Fernando Haddad procurou, infrutiferamente, acalmá-lo, prometendo a realização de novos cortes, se necessário, de um ajuste que, portanto, deve ser entendido como um processo contínuo para equilibrá-las. Se isso ocorrer, tanto os trabalhadores como os que dependem de benefício do governo podem se preparar para enfrentar dias mais amargos, a predominarem os mesmos interesses que orientaram a aprovação do pacote atual.
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social e do Grupo de Estudos de Conjuntura do departamento de Economia da UFES, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Nascimento, auge e declínio do Estado e da democracia”, publicado pela Editora Letra Capital, em 2024.
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