Por Fabrício Augusto de Oliveira*
Durante muito tempo comprei a ideia de ser a democracia dos Estados Unidos a maior e melhor do mundo, um exemplo para os demais países. Atualmente sabe-se que isso pode até ser verdade em termos do tamanho da população, mas não de sua qualidade. De acordo com o Índice de Democracia, criado em 2006 pelo Economist Intelligence Unit, da revista The Economist, para examinar o estado da democracia em 167 países, desde 2016 os Estados Unidos passaram da condição de Democracia Plena para a de Democracia Imperfeita (ou Democracia Falha) e, de lá para cá, o país só tem visto seu índice de democracia piorar.
Em 2023, último ano da pesquisa realizada por essa instituição, publicada em fevereiro de 2024, o índice de democracia neste país estava em 7,85 (abaixo, portanto, do índice de 8,0 que classifica as democracias como plenas), com o mesmo ocupando o 29º lugar entre os 167 países pesquisados. Não pode, assim, ser considerado como um exemplo para o resto do mundo como uma democracia exercida em sua plenitude.
De acordo com a caracterização sobre o grau de democracia examinado por aquela instituição, democracias imperfeitas são verificadas em nações onde as eleições são justas e as liberdades individuais respeitadas, mas que apresentam problemas, como, por exemplo, os que dizem respeito à liberdade de imprensa e ao menor respeito pela oposição e por críticos políticos. Existem, assim, falhas significativas em vários aspectos democráticos, incluindo a cultura política, baixos níveis de participação política e questionamentos e dúvidas da população no funcionamento de governança, ou seja, na confiança depositada pela população nas lideranças que governam o país.
De uma maneira geral, podem-se apontar vários problemas atuais que afetam a democracia norte-americana.
Em primeiro lugar, a existência de um sistema eleitoral ultrapassado, no qual o presidente da República é eleito por um Colégio Eleitoral, mecanismo que propicia a eleição de candidatos sem que este consiga a maioria do voto popular, como recentemente ocorreu com George W. Bush, em 2000, e com Hillary Clinton, em 2016. Nada a ver com um lema caro ao país que estabelece para “cada eleitor, um voto”.
Em segundo, considerada inovadora à época, quando aprovada em 17 de setembro de 1787, tendo entrado em vigor em 4 de março de 1789, ao contemplar a divisão de poderes entre o Executivo, Legislativo e Judiciário, a Constituição dos Estados Unidos conheceu poucas mudanças desde a sua criação, mesmo com o país passando de uma condição de economia agrícola para a de potência mundial, modificando o seu sistema de valores e das relações sociais e econômicas. Tornou-se, assim, diante dessas transformações, uma peça anacrônica em vários temas, como os de liberdades civis e de proteção ao cidadão, de liberdade absoluta de expressão e até mesmo do direito do mesmo para possuir arma, o que, se válido quando existia na forma de colônias em luta contra o poder imperial britânico, não mais se justifica no contexto mundial atual.
Em terceiro, porque a administração de Donald Trump (2017-2020) não só cindiu a sociedade, provocando uma forte e acentuada polarização entre a população dos menos favorecidos do sistema e a da que se encontra em melhor posição econômica, como procurou desacreditar as instituições democráticas, incluindo o próprio processo eleitoral, acusando-o de fraudulento, ao perder as eleições de 2020 para Joe Biden, do Partido Democrata. Com esses argumentos, insuflou seus apoiadores a invadir o Capitólio e impedir sua posse, onde essa ocorreria, criando um clima de terror para inviabilizá-la. Um verdadeiro ataque à democracia que, pelo menos até o momento, não lhe causou nenhuma punição, já que, além de ter sido reeleito para um segundo mandato em 2024, conseguiu se livrar, na condição de novo presidente, de vários processos, mesmo sendo considerado culpado em alguns deles.
Essa deterioração da democracia norte-americana não tem sido, também, revertida pela Suprema Corte do país, a qual, pelo contrário, tem atuado para miná-la ainda mais. Contando com maioria conservadora no tribunal, a Suprema Corte tem aprovado uma série de medidas que enfraquecem ainda mais a democracia. Em junho de 2022, decidiu que o aborto não é mais um direito constitucional, que havia sido aprovado em 1973, transferindo essa decisão para os 50 estados do país, um verdadeiro retrocesso em termos de liberdade individuais. Maior retrocesso ainda foi a concessão de imunidade absoluta a presidentes da República por crimes cometidos durante o seu mandato, colocando-o acima da lei, mesmo que sob o argumento de que essa imunidade se refira a atos oficiais. Decisão que foi tomada, em 01/07/2024, exclusivamente para proteger Donald Trump dos processos que enfrentava na justiça pelos crimes cometidos em seu governo, incluindo o incentivo à invasão do Capitólio. Não há democracia que consiga sobreviver com essas aberrações.
A situação por lá pode piorar ainda mais com as medidas anunciadas por Trump, e algumas já aprovadas no dia de sua posse: a anistia para os condenados pela justiça pela invasão e destruição do Capitólio e pelos atentados contra o Estado democrático de direito, significando que estes estarão livres e estimulados para prosseguir nessa jornada, visando a derrubada da democracia; a caça feroz aos imigrantes ilegais nos Estados Unidos, estimados em 11 milhões, e sua deportação em massa, sem dó nem piedade; a saída do país dos acordos de clima do mundo, visando intensificar a exploração de combustíveis fósseis para a maior grandeza dos Estados Unidos e desgraça do planeta e da humanidade; a ameaça de anexação de territórios pertencentes a outros países, como o Canal do Panamá, a Groelândia, e até mesmo o Canadá, num retorno ao quadro existente antes da Segunda Grande Guerra; a extinção das políticas de diversidade, com os Estados Unidos passando a considerar apenas dois gêneros, masculino e feminino, e desidratando ou extinguindo também políticas de combate ao racismo.
Se continuar nessa toada, em pouco tempo os Estados Unidos perderão a condição de uma Democracia Imperfeita e perfilarão ao lado dos Regimes Híbridos que muito pouco se diferencia de Regimes Autoritários na classificação do The Economist, o que será um grande golpe para a democracia no mundo. Com a conivência da Suprema Corte americana.
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Fiscal e do Grupo de Conjuntura do Departamento de Economia da UFES, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro, “Nascimento, auge e declínio do Estado e da democracia: para onde vai a sociedade”, publicado pela Editora Letra Capital, em 2024;