Bárbara Juliana Pinheiro Borges*
Li com pesar o que foi amplamente divulgado nas mídias sobre o compartilhamento de material perfurocortante por estudantes do ensino médio na rede pública de uma escola do Espírito Santo - Brasil, sob a responsabilidade do professor de química.
Sem dúvidas o desenvolvimento de uma metodologia não convencional de aula, como a proposta, é bem-vinda ao ensino e difusão da Ciência, mas é preciso o implemento de condições ou requisitos para que isso ocorra com segurança. Vejamos.
Qualquer procedimento a ser realizado com seres humanos deve ser precedido de autorização, quando os seres humanos (ou seus responsáveis) possuem condições de exercer a autorização (situações excepcionais de risco à vida são tratadas com a devida excepcionalidade, em prol da manutenção da saúde e da vida, o que não era o caso). Em se tratando de menores de idade, é preciso autorização de pais e/ou responsáveis. Além disso, é necessário o domínio da técnica para realização do procedimento. E aí chegamos na inépcia.
Inépcia, segundo o dicionário, é um termo que indica falta de aptidão ou ausência de capacidade. Mas você pode estar se perguntando: qual a dificuldade de furar o dedo? Precisa de habilidade para isso? Podemos pensar: até uma criança fura o dedo em um prego enferrujado em um pedaço de madeira no quintal… De fato! Contudo, estamos falando de um contexto escolar, com estudantes sob a responsabilidade de um educador que, até onde se sabe e se supõe, estaria apto ao exercício do magistério e da atividade didática proposta. Era esperado que a atividade de investigação de tipagem sanguínea fosse precedida de planejamento, do qual fazia parte no mínimo, conforme as boas práticas, o domínio de questões de biossegurança, com a consulta sobre manejo e descarte adequado de material perfurocortante e a autorização prévia dos responsáveis pelos/as estudantes.
Aparentemente, não foi o caso...
Seguimos então para a Bioética. Nasceu como um fenômeno cultural na década de 1970, em contraponto aos abusos praticados contra a vida humana, ocorridos e decorrentes da segunda guerra mundial. A partir de então se consolidou como um campo do saber e da Ciência. Atualmente, não se faz qualquer pesquisa, ainda que seja a “simples” resposta a um questionário ou consulta a um prontuário médico, sem que antes o projeto seja submetido previamente a um Comitê de Ética, analisado e aprovado.
Por certo a intenção do referido professor de química não era produzir uma pesquisa, mas os princípios (bio)éticos envolvidos, tanto na proposta de atividade didática quanto na pesquisa científica, são (ou deveriam ser) equivalentes: o respeito à autonomia da pessoa, a não-maleficência, a beneficência e a justiça.
Mas quais as implicações deste ato de inépcia ou de ofensa bioética e biossegurança?
Bom, são incontáveis. Vou me restringir a duas implicações, muito específicas, que me tocam profissionalmente enquanto docente e pesquisadora e nos tocam a todos e todas como seres humanos.
Em primeiro lugar, a disseminação de desinformação. Uma verdadeira epidemia de fake news emerge com episódios dessa natureza. Atos impensados, irresponsáveis, descuidados por parte de um representante da classe docente reflete em questionamentos genéricos acerca da categoria profissional como um todo. E vou provar com o segundo argumento.
Em segundo lugar, ocorre o prejuízo a outras atividades didáticas e de pesquisa mesmo que sérias, fundamentadas em evidências científicas, autorizadas administrativa e eticamente, seguras e que respeitem as normas. Explico-me.
Nosso grupo de pesquisa vem desenvolvendo ações de educação e promoção da saúde tendo como público-alvo estudantes. Exatamente no momento de agendarmos ações na escola com estudantes para realizarmos, dentre outras atividades, o rastreamento de diabetes, o que se faz com punção digital (furo no dedo), nos deparamos com esse cenário de dúvida e insegurança (totalmente compreensível diante dos fatos recentes divulgados na mídia). Nosso projeto tem o potencial de detectar alterações precoces na glicemia ao acaso dos(as) estudantes testados(as), encaminhar para avaliação de profissionais de saúde para investigação e possível diagnóstico de diabetes e devido manejo antes que a enfermidade cause danos maiores.
Infelizmente teremos que adaptar o projeto. Infelizmente teremos que limitar as atividades propostas. Isso não me entristece como pesquisadora. Isso me entristece como mãe, como cidadã. Também ficaria com receio de autorizar procedimentos a serem realizados na minha filha diante deste cenário. Mas fico com mais receio ainda de privar crianças e adolescentes de descobrir precocemente alterações glicêmicas, de privar sobre o conhecimento de sua condição de saúde e de levar isso para suas famílias, considerando que o diabetes tem fatores genéticos importantes (uma das minhas avós faleceu em decorrência de um diagnóstico tardio e complicações do diabetes, portanto, muito mais do que motivos profissionais, tenho motivos afetivos para me empenhar no projeto).
Não me cabe julgar, não me cabe apontar culpados. Posiciono-me aqui como docente, pesquisadora, mãe e cidadã comprometida com a construção de uma sociedade mais justa, equânime, solidária e com a difusão das melhores práticas em Educação e Saúde. Experiencio a defesa da espiral ascendente da Ciência, bem longe do lamaçal que reside no fundo do poço da desinformação, do despreparo e da negligência. Feliz ou infelizmente, não fui capaz de calar. Fica a humilde reflexão e o convite ao respeito à Bioética, à Biossegurança, enfim, o respeito à vida.
* Professora Doutora, Departamento de Ciências Farmacêuticas, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Espírito Santo (DCFAR/CCS/UFES).