Por Delano Câmara
Outro dia eu estava meio distraído, olhando para a rua da janela do meu apartamento, quando vi o filho de um vizinho entregar o relógio e o par de tênis a um pivete que parecia ameaçá-lo com uma coisa brilhante nas mãos. Foi tudo muito rápido, e só passado o episódio é que fui me dar conta do que realmente estava acontecendo: o garoto, pálido, olhava para os pés descalços, esfregava os olhos, esticava o olhar até o meu terceiro andar e parecia, de uma certa forma, estar me censurando por eu continuar na janela, mudo, parecendo não estar dando importância nenhuma ao que estava acontecendo bem debaixo dos meus olhos.
Estávamos nós dois sozinhos: ele, pasmo, no meio da rua, e eu, abobalhado com a velocidade do ladrão, mal conseguindo reorganizar as coisas na cabeça para descer à rua e ajudar o garoto. Quando consegui me tocar, tomei o elevador e apareci na porta do prédio, onde já encontrei homens e mulheres gesticulando, falando alto, metendo o pau no governo que não enxerga essas coisas, nessas entidades assistenciais que vivem pedindo dinheiro e não resolvem coisíssima nenhuma, nesses falsos chefes de família que deixam seus filhos à mercê das diabruras do mundo e que por sua vez se encarrega de transformá-los em marginais quando, de repente, todos se voltaram para mim e uma daquelas pessoas me cravou um olhar muito severo e inquisidor.
O garoto, que até então permanecera mudo, embora de nada me acusasse, invocou meu testemunho, como se desconfiado de que não acreditassem em sua história:
-“O moço aí viu tudo”.
Daquele dia para cá vejo que a vizinhança já não é a mesma: o bom dia da mulher do andar de baixo, que antes era caloroso, de repente se tornou metálico e formal, assim como o cumprimento amarelo do inquilino ao senhorio que aparece para receber o aluguel. Não é só: até o português do bar da esquina, informado do fato, já não me traz mais aquele tira gosto como oferta da casa. Traz, mas com o preço anotado à parte.
Por isso, senhor ladrão, lhe faço agora este apelo. O senhor sabe muito bem que do lugar onde eu estava, já onerado agora por essa lerdeza natural de quem passou dos cinqüenta anos, mal me apercebi o que se passava, mesmo porque o senhor, no arroubo da sua vadia juventude, foi tão rápido e tão fugaz que sequer me deu tempo de notar que se tratava de um empréstimo compulsório que o senhor pedia ao filho do meu vizinho. E mesmo que de tal eu me apercebesse, a leveza de suas pernas e o frescor da sua arrogante mocidade não me dariam sequer a chance de alcançar as escadas do prédio, pois o senhor já estaria à léguas de distância, fugindo nem sei mesmo de qual reação eu pudesse ter.
O senhor sabe que eu não tenho qualquer culpa e que é injusto o que estão fazendo comigo. O que me serve de consolo é saber que o senhor, apesar de tudo, deve ser um homem sensível e que não vai me deixar assim, à mercê dos meus vizinhos, mesmo porque o culpado de tudo é o senhor.
Por isso, senhor ladrão, eu que da vida só espero uma velhice tranquila, podendo sentir o calor e o apreço no cumprimento da vizinhança e, de graça, o gosto temperado das guloseimas do português da esquina, peço ao senhor que se não puder escrever a cada um dos meus vizinhos contando como tudo se deu, que pelo menos repita o gesto em uma tarde de domingo e quando todos estão em suas janelas a contemplar o por do sol deste verão que se inicia.
Mas escolha o menino da cobertura; além de ser mais longe para o pai chegar até o senhor, o que vai provar que eu não poderia mesmo ter feito qualquer coisa para evitar o assalto, ele tem tênis importados e novíssimos e eu, cá no fundo, ainda me sentirei vingado pelo olhar insosso que a mãe dele, certamente pensando horrores a meu respeito, e pelo mesmo fato, me lançou dia desses no elevador.
delano@santoscamara.com.br
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