Por Erlon José Paschoal*
Pouco se fala sobre a performance física do músico em cena. Para o ator, o corpo está incumbido de mostrar em cena o personagem, isto é, através de seu comportamento, o público consegue visualizar um conjunto de elementos que compõe o personagem, e perceber assim sua singularidade. Esta percepção da presença do corpo do ator em cena, e de quanto este corpo fala antes mesmo que a encenação possa ocorrer é característica marcante da linguagem teatral. Neste caso é o resultado de um processo de trabalho com o objetivo de desenvolver habilidades que capacitem o ator a construir um determinado personagem. Isto vale também com as devidas proporções para o músico em cena.
Na elaboração de uma linguagem gestual própria do teatro, Brecht criou o conceito de Gestus – que pressupõe a postura do ator, a composição e a linguagem gestual integral da cena com todo o seu significado. A consciência do Gestus leva o ator a aperfeiçoar o seu processo de interpretação, a aprimorar a intermediação entre a obra e o público, de acordo com propósitos previamente escolhidos.
Em seu livro O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, Nietzsche destaca o surgimento conjunto destas duas linguagens artísticas no mundo grego: teatro e música. No início da obra o autor afirma que o “progresso da arte está ligado à duplicidade do Apolíneo e do Dionisíaco”, tal como a relação dependente presente na ”dualidade dos sexos”, em constantes enfrentamentos e “reconciliações periódicas”. As duas forças – apolínea e dionisíaca – atuam de maneira conjunta, ora prevalecendo uma, ora prevalecendo outra na dinâmica da vida. De um lado, o cosmos, a ordem, a serenidade, a medida, a razão, a contenção, o equilíbrio. De outro, o caos, a embriaguez, os instintos, os desejos, o Eros, o desmedido. O espírito de Dionísio é bem representado pelo culto e pelo cortejo orgiásticos das Bacantes, mulheres em transe, em êxtase causado pelo vinho, dançando, tocando, cantando em honra ao deus, que o teatro elegeu como seu criador. Para Nietzsche, a tragédia une as duas forças, os dois princípios metafísicos, as duas pulsões da natureza e da arte, e sobretudo une as duas linguagens artísticas: música e teatro.
Relacionar este livro poético de Nietzsche à performance do artista cênico, incluindo aí o músico em cena, sem dúvida, enriquece as possibilidades de perceber e avaliar a teatralidade e todo o potencial presente nesta atividade. No caso dos músicos de grupos orquestrais, de orquestras e de cantores líricos e de coros, que costumeiramente atuam de maneira “apolínea”- vestidos de preto ou com figurinos em tons escuros, “almejando desaparecer no cenário”, tornaram-se “neutros, invisíveis” -, o seu propósito maior parece ser dar à música o protagonismo absoluto, a hegemonia total, em detrimento da fisicalização dionisíaca, da linguagem do corpo em cena.
Por vezes assisti a apresentações de orquestras e grupos musicais, nas quais percebia alguns músicos com ar absorto e gestos de enfado, enquanto não “era sua vez de tocar”, esquecendo-se de que estavam em cena, à vista de todos, e que o “discurso” transmitido pelo seu corpo evidenciava um suposto desagrado com o que estava sendo apresentado ali naquele momento. Consciente ou inconscientemente estas posturas influenciam o público que poderá também ser levado a achar enfadonho e desinteressante o espetáculo. Falta talvez aí a consciência de que se trata de um trabalho cênico, de que durante todo o tempo em que se encontra no palco, o músico “transmite” ao público mensagens gestuais, e que o conjunto formado por suas posturas, gestos, figurino, cenário e por sua competência como instrumentista ou cantor, constituem a sua performance. É importante destacar que cabe ao músico em cena primeiramente mostrar ao público seu envolvimento, sua paixão, sua alegria com aquilo que está tocando e interpretando; o instrumento passa a ser um complemento de seu corpo e vibra junto com ele. Tudo isso amalgamado com a ordem, com as convenções e com a disciplina apolínea que esta prática artística pressupõe e exige.
Desse modo, o espectador vê, ouve, sente e desfruta tudo simultaneamente, embalado pelas belezas daquela criação musical e pelas forças presentes na forma e nos impulsos que movem e produzem aquela performance. O prazer de fazer parte deste ritual milenar e as palmas efusivas serão os resultados inevitáveis.
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, escritor e tradutor de alemão.