Por: Anaximandro Amorim*
Reza a lenda que o multimídia Milson Henriques (1938 - 2016) detestou Vitória quando a viu pela primeira vez. Fluminense de São João da Barra, ao que parece, ele estava de passagem para o Uruguai, tendo chegado ao Espírito Santo em 1964, para, no máximo, uns quatro ou cinco dias. Ficou até o fim da vida. Milson era assim: imprevisível, multifacetado, megatalentoso, humilde, excêntrico. Não tinha e-mail, nem celular. Dirigia um Fusca 72, para cima e para baixo. Ele estava pintando uns cartazes quando foi descoberto por Cariê Lindemberg, diretor da Rede Gazeta de Televisão (afiliada da TV Globo), sendo chamado para a primeira agência publicitária do Espírito Santo, a Eldorado. Imbatível no desenho, criou vários personagens, dentre os quais a eterna Marly, solteirona feia, encalhada, mas super carismática. Marly virou peça de teatro. Normal. Henriques também era ator e dramaturgo, tendo agitado a cena cultural capixaba desde os anos de chumbo. É dele a montagem local de "Arena contra Zumbi", de 1966. Com tantos predicados, impossível não lhe dar outra alcunha que não a de multimídia!
Eu conheci Milson pela televisão. Corriam os anos 1980 e ele fazia um programa infantil. Bons tempos, aqueles! Época em que o artista local ainda tinha espaço e que os canais estavam mais preocupados com conteúdo do que audiência. Ele ensinava a desenhar. Eu adorava. Pegava papel e caneta e ficava na frente do televisor, acompanhando. Sempre partia de um círculo, fazendo uma cruz no meio da qual a gente começava pelo nariz. Era o Mickey, a Minnie, o Tio Patinhas, a própria Marly e tantos outros personagens que povoavam meu imaginário de criança, imprescindível para a construção do escritor que eu sou hoje.
Mais tarde, vim a conhecer o ídolo pessoalmente. Chego à Aliança Francesa e, um belo dia, me deparo com ele, matriculado no curso. Nunca cheguei a ser seu professor. Pudera: Milson fazia de tudo para... continuar no nível iniciante! Pois é, apesar de ter aptidão para avançar, ele se dizia incapaz. Assim, teria mais chance se partisse do zero, de novo e de novo. Puro jogo de cena. Tanto que ele fundou o grupo de teatro da Aliança. Mas era o coral, no entanto, o seu xodó, sendo presença assídua em todos os ensaios. Barítono de mão cheia, Milson nos revelava mais uma faceta: a do cantor. Pura arte!
Infelizmente, acompanhei os anos finais do artista. Quisera poder ter convivido com ele mais tempo. Tinha sempre uma história engraçadíssima, como quando chegou em um país do Leste Europeu e, em um inglês macarrônico, pediu para acenderem a luz de um cômodo dizendo open the light! Ou quando contava como criava a Marly, em um exercício matinal, diário, antes mesmo do café, indo entregar as tirinhas pessoalmente, à moda antiga. E de onde tirava inspiração para suas histórias. Uma vez, ele nos confessou: "A Marly sou eu!". Só faltava ter falado em francês, que nem o Flaubert com a sua Madame Bovary!
Apesar do porte atlético e de uma privilegiada cabeça, Milson Henriques perdeu a luta para o câncer linfático no dia 25/06/2016. Não bastaram a torcida e as várias ações em prol de seu restabelecimento, como uma, na Aliança, de que participei. Foi o homem, ficou o legado. E que legado! Segundo Juarez Vieira e Mariza Zanchetta, casal cuja família "adotou" o multimídia, só o que tem no apartamento do Milson dá para fazer um museu. E, ao que parece, o material será exposto em 2017, num festival em sua homenagem. O Governo do Estado e a Secretaria de Estado da Cultura publicaram nota. A Prefeitura Municipal de Vitória decretou luto oficial de três dias. Cogita-se a criação de um busto. O cara que ficaria só quatro dias no Estado ganhou o carinho e a admiração de todos. E se tornou, incontestavelmente, um ícone da cultura capixaba.
*Advogado, Escritor. A foto da ilustração é do Chargista Amarildo que lhe fez uma homenagem.
** Publicado também em www.anaximandroamorim.com.br