Por Ester Abreu Vieira de Oliveir*
Clarice Lispector, escritora e jornalista, nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira, é autora de romances, contos e ensaios. Sua obra Laços de família (1970) é uma coletânea de treze contos, em que se observa uma introspecção e uma nota de angústia ante a condição humana. A angústia, uma constante nas obras desta escritora, tem sua culminância em Paixão segundo G H, mas procuraremos, em Laços de família, pelo restrito espaço, centrarmos na personagem do conto “Amor” para analisar um atuar feminino.
A escritura de Clarice, misto de Simbolismo/Realismo, chega a um Surrealismo-Expressionista, no momento em que as relações entre as personagens, quase sempre num ambiente onírico, são sacudidas ou completadas por animais de diversas espécies: barata (esmagada), ostra, aranha, borboleta, mosquitos, formiga (pisoteada), pássaro (esmagado), pardal ciscando, galinha, búfalo, esquilo, cão, gato, besouros.
Os temas de Laços de família são variados. Predominam: o zelo pelo lar (compras, cuidados dos filhos, jantares, visitas) e o ritual da comida nos contos: “Uma galinha”, “Feliz aniversário”, “O jantar”, “A imitação da rosa” e “Amor”. O tema da tentativa de expiação se encontra no conto “O crime do professor de matemática”. Porém em quase todos os contos há o tema da busca da felicidade. No conto “A imitação da rosa” Laura devaneia dentro do espaço fechado de sua casa, mais precisamente na sua sala. Ela precisa enfrentar o mundo hostil das visitas e sente-se protegida no ambiente impessoal de sua sala de visitas, com o seu copo de leite que sorve lentamente, vendo as rosas da jarra, encontrando-se.
Muito frequentemente o ambiente familiar histórico se reflete sobre a narração, tornando-se a vida ficcional um determinante do estudo da personagem. As personagens de Clarice Lispector vivem no Brasil dos anos 40/50, pertencem à classe média e sofrem as restrições da sociedade. Como as ideias que orientam e regulam a família, em geral, estão estratificadas e petrificadas naquilo que se chama instituição social, a família moldada, ideológica e organicamente, caracteriza uma época. Tem sido o objetivo de políticos, filósofos, sociólogos, jornalistas, psicanalistas, professores, escritores, etc, combater os conceitos básicos da organização familiar, preocupando-se com o papel subalterno da mulher no ambiente familiar. Clarice e muitas escritoras, como Virgínia Woolf, se inquietaram (inquietam) com o papel subalterno da mulher no ambiente familiar e tentaram combatê-lo denunciando-o.
No conto “Amor”, a personagem Ana tinha uma vida tranqüila com filhos, marido e cuidados no lar. Pagavam o apartamento às prestações. Segundo a narradora, Ana cuidava da casa, os filhos eram bons, a cozinha espaçosa e o fogão enguiçado. Ela aboliu a felicidade. Mas uma tarde, vindo das compras em um bonde, ao ver um cego mascar um chiclete, foi tocada por um desvario de vida e nojo e veio a sofrer um delírio em um jardim que tem muito a ver com o “Jardim das Delícias” de Bosch, pela carga de crueza, e do Éden, pelas delícias do sabor e ocultamento mágico. Nesse jardim, pequeno bosque cheio de mistério, de encantamento e de excessiva beleza, as árvores, elemento fálico, convidam à vida. A linguagem elíptica, sugestiva e complexa e o claro-escuro da paisagem colocam a estética do conto num barroco moderno:
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se luxuosas paras de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte era o que pensávamos. (LISPECTOR, 1970, p.24)
A personagem sente intensa fascinação pelas frutas, símbolo do desejo terrestre, com toda a sua carga atrativa dos sentidos: o visual, o olfativo, o paladar, o tato (na sensação de morder), e uma necessidade de realização sexual motivada por sua carga erótica, refletida, quase sempre, nessa exuberância dos sentidos.
Os contos de Laços de família seguem as características fundamentais do gênero, concentrando num só episódio que lhe serve de núcleo e as possibilidades da narrativa correspondem a determinado momento da experiência interior.
O episódio núcleo das narrativas, em geral, é um momento de conflita tensão, que estabelecerá a ruptura da personagem com o mundo. Assim, em “Amor”, quando Ana vem das compras e, de dentro do bonde, vê um cego mascar chiclete, pressente o absurdo da vida e se desperta para o amor e a compreensão cósmica. Este momento de tensão conflitiva que se estabelece entre a personagem e o cego, ou entre ela e o cosmo, é o núcleo da história.
O cego é o mediador de sua incompatibilidade com o mundo. Ele e as árvores do Jardim Botânico exteriorizam o perigo de viver, isto é, a violência que existe ao redor, refletida na indiferente rede de tricô da sacola que não estava mais tão íntima como quando Ana a tricotava. Era áspera. Os ovos (símbolo da vida) que, quebrados, envoltos num papel, estavam dentro dela, tinham aparência hostil. Tudo, em seu redor, era sem sentido.
A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando tricotava. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. [...] Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornava de novo um mal-estar. Vários ovos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio á tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-se tão livres que elas não sabiam para onde ir [...] (LISPECTOR, 1990, p. 21)
Ana reconhece que seus esforços para adquirir a normalidade fora em vão e que a morte era docemente tranqüila:
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos. (LISPECTOR, 1990, p. 24)
Mas a hora da verdade para Ana chegou com o ritual da comida, estando as janelas todas abertas (símbolo da eclosão erótica e da liberdade) e no “nono andar” (número completo, símbolo da verdade, número dos ritos medicinais, imagem completa dos três mundos) no seio familiar, com marido, filhos e irmãos que, felizes, que não viam defeitos na vida, “com o coração bom e humano” (p. 28). Nessa hora procurou reter aquele momento “como a uma borboleta, [...] prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu”.(p. 29). E a epifania, característica da narrativa clariciana, chegou para Ana. Então, abandonou todo o momento sofrido pelo nojo, produzido pela visão do cego mascando chiclete (“[...] com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitória-régias boiassem no escuro lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico”, p. 29), e continuou a vida cotidiana da hora de dormir, de pentear, de tranquilidade, soprando “a pequena flama do dia” (p. 30).
A náusea era proveniente da angústia do medo a um perigo inexplicável, talvez a um perigo de morte, de uma vida não cotidiana, não normal. Por isso, ela se acomodou quando, ao final, retornou sua vida à normalidade e ao convívio dos filhos e do marido, porque, acabando-se a vertigem de bondade que gerara a náusea, a vida se estancara, e ela não saberia dizer quantos anos levaria para envelhecer de novo.
Acabara-se a vertigem de bondade.
E, se atravessara o amor e o seu inferno, ponteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia. (LISPECTOR, 1990, p. 30)
Sensibilizados com o papel subalterno na mulher na instituição social, muitos movimentos surgiram como o do feminismo que hasteou bandeira proclamando a sua revolta contra essa situação e, numa tentativa de salvaguardar os direitos da mulher e para valorizá-la foi instituído, em 1975, o dia 08 de março como o dia da Mulher, por meio de um decreto da ONU.
* Professora PPGL/Ufes - Membro da AFESL; ALES; APEES, IHGES
Referência
LISPECTOR, Clarice. Laços de família. 4.ed. Rio de Janeiro: Sabiá, 1970.
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