Por Ester Abreu Vieira de Oliveira*
A obra Torre do Delírio escrita por Luiz Guilherme Santos Neves, subtitulada: “contos eróticos e fantásticos”, ilustrada por Rômulo Salles de Sá Filho, teve a primeira edição em 1992 e já está à disposição do leitor no site
http://www.tertuliacapixaba.com.br/paraler/torre_do_delirio/torre_do_delirio_02.html .
O livro está dividido em duas partes: na primeira há 12 contos e na segunda 13. Os contos, inseridos nessas partes, nos fornecem um mundo erótico, numa linguagem poética e emotiva.
Na edição de 1992, o escritor faz a apresentação do livro na orelha do livro, dando pistas ao leitor da fonte borgeana à qual recorreu para as imagens eróticas de seus contos (o que ele chama de signos), com a seguinte explicação:
“Sempre me pareceu que as figuras borgeanas de O Livro dos Seres imaginários fazem parte de um zodíaco fantástico. Esta é a raiz do delírio que envolveu seres e signos extraordinários com personagens femininas alucinadas.”
Dos contos de Torre do Delírio, curtos, poéticos, artisticamente organizados, emerge um signo onírico, que prevalece sobre a significação, fazendo lugar no semântico.
Em filigrana, o escritor faz pulsar o princípio do prazer, onde a fantasia brota das profundas camadas do inconsciente e se une ao mais elevado produto da consciência: - a arte -, estabelecendo o seu universo objetivo. De uma maneira lúdica os opostos adquirem vida - fantasia / realidade -, visando a uma concretização erótica. Dando asas ao sonho, Eros, instinto vital, gravita pela Torre do Delírio, pois o erotismo, no conceito de Octavio Paz é a dimensão humana da sexualidade, é o que a imaginação acrescenta à natureza.
Na folha de rosto de Torre de Delírio o leitor se depara com uma meta-construção do título: “construída de signos, intersignos e fantasmas oníricos” e, ao mesmo tempo, tem uma metalinguagem da palavra signos na expressão “fantasmas oníricos”. Essa equação lhe permite direcionar a sua compreensão do livro para o mundo da linguagem e do inconsciente, porque, se o sonho é um desejo reprimido, o signo representa o mundo ideológico pela intervenção da linguagem. Este é dotado de uma dupla orientação, pois reflete a realidade ao mesmo tempo em que a modifica através de um sistema de representação.
Explicamos: a obra literária tende à ambigüidade. Ela não diz, sugere. Segundo Bakhtin a capacidade de representar elimina a convencionalidade do signo. E quanto a Saussure, ele instalou a problemática do signo linguístico. Para ele o signo resulta da união do significante, do significado e da significação. O significante é a parte sensível, a imagem acústica, o significado, a parte ausente, o conceito, e a significação, a relação mantida por ambos. Empregado em semiótica, o signo denomina uma forma de expressão qualquer, encarregada de traduzir uma idéia ou coisa.
A obra literária está aberta, através do tempo, a diferentes leituras criadoras. Por essa razão, não falseamos ao afirmar que o livro de Luiz Guilherme é eco de El Libro de los Seres Imaginarios de Jorge Luis Borges, já que ele possui como este uma recristalização de seres do imaginário.
O procedimento de releitura de uma obra é bastante utilizado por Borges, o mestre de contos curtos e fantásticos, da obra aberta ao infinito. Porém, a sutileza e poesia do erotismo das constantes presenças femininas em Torre do Delírio, quase que anuladas nos contos borgeanos, situam a obra de Luiz Guilherme no âmbito das obras do modernismo hispânico, o de Rubén Darío.
Se por um lado, quando reproduz “seres imaginários”, Luiz Guilherme parodia Borges, no conceito bakhtiniano da palavra, isto é, como elemento de ligação entre vários discursos, em várias texturas lingüísticas - técnica muito própria da literatura latino-americana -, por outro lado, não deixa de seguir a tradição hispânica da linguagem musical, poética, impregnada de erotismo exuberante, própria do modernismo hispânico, estética literária do final do século XIX e princípio do XX.
Em Torre do Delíriohá um total de 25 contos que correspondem ao número de letras do alfabeto se acrescentarmos K e W às 23 letras oficiais, dando-nos a idéia da palavra em grau infinito, como os seres imaginários. Cada parte do livro, com respectivos prólogos, tem um título, sendo o da primeira, SIGNOS, e o da segunda, INTERSIGNOS.
No primeiro prólogo, o narrador esclarece que os signos dizem respeito a mulheres (“signos imaginários”, “o marfim dos (...) delírios”) e que o espaço da narrativa é uma “torre sem janela”, “recolhida na própria sombra, despojada como um convento”, onde há um “leito fosforescente,” “uma porta” e “uma escada em caracol,” situada no canto da torre que dá “acaso à coroa da torre ou a andares que se interligam até o infinito”, explica o narrador.
A torre é um refúgio, um isolamento, um elemento simbólico da ascensão, a sentinela e a parte intermediária entre a terra e o céu. Ela é a parte mais visível de uma localidade e o lugar que nos proporciona descortinar melhor a paisagem, isto é, nos oferece uma melhor visão. No jogo de xadrez, depois da rainha é a peça mais importante. A torre não deixa de estar incluída entre os símbolos da unidade psíquica, exercendo influência específica sobre o ser humano que se introduz nela ou ali vive.
Na obra de Luiz Guilherme, as fugazes figuras que atuam eroticamente na noite do narrador, prisioneiro, talvez, numa torre do sonho, da ilusão, nos fazem lembrar as figuras eróticas dos altos-relevos que adornam o templo Kandarya - Mahadeva da Índia.
O tempo de permanência das visitantes na torre é, em geral, efêmero. O narrador explicita-o no conto de Dê, o segundo, informando que a protagonista permaneceu três dias e três noites e no de Set, o sétimo, que, após o sétimo dia, a pedido do próprio narrador, vai embora.
A referência à “coroa da torre” e não a um campanário, por exemplo, simbolizando o supremo poder, com um selo místico muito determinado, nos direciona para o tarô, jogo de carta com regras e interpretações individuais. E, a referência a uma torre “sem janela” nos leva à idéia de proteção.
No segundo prólogo, o narrador se refere à localização dos intersignos (“onde os signos confinam”) e esclarece que eles seguem a linha dos “seres fantásticos” e que são poderosos. Ele diz que são “doze ao todo os intersignos”, e nos apresenta, ironicamente, 13. Tanto 12 como 13 são números cabalísticos. O doze de ordem cósmica, número dos signos do zodíago, e o treze, marcado por um valor adverso, é signo de nascimento e morte.
Os signos e os intersignos de Torre do delírio dizem respeito a mulheres, conforme a informação do prólogo da primeira parte. São 13 os contos da segunda parte, correspondentes aos intersignos. Logo há 13 intersignos, mas um total de quatorze mulheres. Isto porque, no 11º intersigno, no conto 24, há um personagem andrógino cuja masculinidade o narrador só percebe no último instante do encontro amoroso, logo, ele é mais um elemento feminino, e porque o 16º conto, o terceiro, dessa parte, Ada e Ana, contém dois signos, somando-se esse número às 12, da primeira parte, veremos que o narrador recebe ao todo 26 visitantes em sua torre.
Logo, concluímos que Luis Guilherme dissolve motivos preexistentes e recria outros numa linguagem lúdica, respaldada por um mundo mágico, duplo, paródico-demoníaco do casamento, onde tudo se transforma: até o narrador sofre os efeitos de uma metamorfose. Essa é uma obra de um escritor capixaba que deve ser lida.
*Profa. da Ufes . Membro das entidades capixabas IHGES, AEL, AFESL, APEES
Bibliografia
BORGES, Jorge Luis. O livro dos seres imaginarios . In: ____ Obras Completas en colaboración. Com Betina Edelberg e outros. Buenos Aires: Alianza Editorial, 1983.
SANTOS NEVES, Luiz Guilherme. Torre do delírio . Contos eróticos e fantásticos. S.C.: DC/ 1992
PAZ, Octavio. A chama dupla. Lisboa: Assírio & Alvim, 1995.